Por Yasmin Solon
No começo as flores, chocolates e simples demonstrações de afeto eram tão corriqueiras e rotineiras que Maria se sentia até um pouco sufocada. Eles se conheceram em um culto da Igreja do bairro, em um domingo chuvoso. Maria e Francisco tiveram o início da história digna de cena de filmes de romance. Na saída do culto, ela havia esquecido seu guarda-chuva e então, Francisco teria oferecido uma carona debaixo da sombrinha.
Depois, o encontro semanal tomou proporções românticas e, em menos de um ano, estavam morando juntos numa casa alugada. A relação começou a ficar desgastada quando Francisco perdeu seu emprego. A professora ficou incomodada em como bancava todos os gastos da casa e as discussões se tornaram comuns, tomando lugar das demonstrações de amor. Conforme o incômodo crescia, as brigas tomavam proporções mais violentas, até que Francisco deferiu seu primeiro empurrão ao “amor da sua vida”, como assim ele chamava-a.
Segunda-feira é o dia da semana mais agitado na 6ª DDM, uma das nove Delegacias de Defesa da Mulher distribuídas por São Paulo, no bairro Campo Grande, na Zona Sul da capital. Um mês após a Lei Maria da Penha completar 18 anos, considerada um marco na defesa dos direitos das mulheres, a violência de gênero ainda é um dos principais problemas sociais do País. Em 2023, a violência contra a mulher cresceu 22%. Isso significa que a cada 24 horas, oito brasileiras sofreram com agressões, torturas, ameaças e ofensas, assédio ou feminicídio. No ano passado, São Paulo foi o estado com mais de mil eventos violentos contra mulheres em relação aos demais estados do país. Em 2021, já foi o estado com o maior pico no número de registros de lesão corporal dolosa ou violência doméstica por estado - foram quase 52 mil em um período de apenas um ano.
Nesses mais de 51 mil casos, existe Maria. Professora em rede pública há mais de 30 anos, Ela sempre gostou de ensinar as crianças do Fundamental. Não só gostava de seu trabalho, como tinha um carinho exclusivo das crianças. Porém, Maria apenas encontrava seu elo na escola, em seus alunos, já que em casa convivia com um agressor.
A Maria que saía de casa nunca era a que voltava. Ao bater o portão da casa alugada em Campo Grande, abria seu coração para as oportunidades do mundo com desejo de viver. Mas ao voltar, depois de um longo dia trabalhando, recebia socos, chutes e pontapés que doíam a alma. Maria tem 42 anos e vive no mesmo País que a lei que intitula seu nome está em vigor desde 2006.
Os números assustadores não só se explicam pelo fato de 20% da população brasileira estar concentrada no Estado de São Paulo, mas também pela ausência de políticas de prevenção e contenção efetivas. Apenas 11 das 140 Delegacias da Mulher em SP funcionam 24 horas. As demais atuam de segunda a sexta-feira, das 9h00min às 19h00min. O projeto que prevê o atendimento ininterrupto das delegacias da mulher em todo o Brasil, incluindo domingos e feriados, foi sancionado pelo presidente Lula no ano passado.
Há cerca de 3 anos, Maria arranjava quase todos os dias uma desculpa para as crianças. Uma vez ela caiu da escada, outra distraída mexendo no celular na rua tropeçou, outra deixou uma panela de barro cair de cima da geladeira, e assim sucessivamente. Com os olhos marejados, Maria contou que, como qualquer paixão inicial, seu então namorado Francisco era tão romântico que aparentava ter saído de um livro de conto de fadas. No dia em que teve seu rosto desfigurado e seu nariz quebrado, tomou coragem às 3 da madrugada e foi à uma Delegacia da Mulher. Depois de muita relutância, a professora denunciou seu companheiro com quem vivia há cinco anos.
Desde então, Maria se sentia não só violentada e machucada, como abandonada. A professora não tinha apoio familiar e nem buscava ter, porque segundo ela, no Brasil é mais vergonhoso apanhar do que bater. Depois de muita coragem e burocracia, Maria conseguiu medida preventiva contra Francisco e segue quase sua vida de antes, dessa vez com algumas cicatrizes no corpo e alma.
A Lei Maria da Penha, com 18 anos de vigência, consegue salvar vidas de muitas Marias pelo Brasil. Entretanto, é importante que a educação seja implementada para que as mulheres possam conscientizar e relatar a violência que sofrem e identificar seus agressores. Além disso, as instituições responsáveis pela aplicação da lei devem oferecer um atendimento humanizado, respeitando a dignidade da mulher e proporcionando apoio psicossocial.
Maria continua em sua casa alugada, ensinando crianças do ensino fundamental e ainda admite estar procurando um novo amor. Ela diz que todo mundo tem uma Maria na vida e merece amar e ser amada. Ainda espera por alguém que a respeite como companheira. "Talvez um João" comenta a professora em meio aos risos.