Luta diária para seguir em frente

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por
Gabriela Reis
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02/06/2020
(Foto: Gabriela Reis)
(Foto: Gabriela Reis)

Essa angústia não é normal. Pelo menos, eu acho que não seja. Quando levantei da cama esta manhã dando graças a Deus por ser sábado, os cinco minutos de alegria que se apossaram de mim enquanto me espreguiçava passaram num instante.

Assim que coloquei os pés no chão a realidade me pegou em um baque. O que esperava por mim quando me levanta-se? O que faria esse dia especial? O que fazer para que esse dia seja diferente de todos os outros? Nada. A monotonia da rotina é quase sufocante, deixando a aflição, a frustração e a melancolia dentro do peito crescerem tomando todo o espaço do ambiente e me deixando pequena e impotente.

A primeira coisa que faço é localizar o computador, largado na mesa do mesmo jeito que deixei na noite anterior. Ele é o símbolo vivo daquilo que estou tentando evitar, é só abri-lo e encarar o plano de fundo que eu sou diretamente teletransportada para a sala de aula, ou então, para redação, onde mais um dia de trabalho me espera.

Meu quarto não é meu quarto, minha escrivaninha não é mais a mesma, e ainda assim, quando a tela que necessita da minha atenção constante se apaga, o lastro da jornada cansativa me persegue. É como se o ambiente que antes me confortava e que me fazia esquecer de todos os problemas do dia, preparando meu espírito para o trabalho que viria depois de outro amanhecer, tivesse sido invadido.

O santuário que cultivei durante anos fora maculado, tirando toda a paz e a tranquilidade e deixando apenas estresse e ansiedade. Balancei a cabeça, para descartar esses pensamentos inóspitos, me levantei e desci as escadas a procura de outro cenário. Mas nada é tão simples, os poucos cômodos da casa se tornaram ainda menores, talvez se eu assistisse algo na sala, ou inventasse algo na cozinha.

Não sei o que é isso que sinto no peito, toda essa nova rotina é algo que ainda não aprendi a lidar. Foram, afinal, apenas cinquenta e poucos dias de quarentena. Cinquenta e poucos dias que não coloco o pé pra fora da porta. Mais de cinquenta e poucos que as únicas notícias na tv, rádio, ou internet são tristes, devastadoras ou extremamente perturbadoras.

Ler, é só isso que me conforta, viajar por entre o passar das páginas, e poder mergulhar em um mundo completamente diferente. Explorando lugares inimagináveis e muito diferentes das quatro paredes que formavam a minha prisão. Dessa forma posso ir para onde quiser, quem sabe hoje mergulho pelos corredores de Hogwarts, ou então me aventuro pelo vasto condado dos Hobbits.

É isso. Horas se passaram, e numerosas páginas foram viradas. Não sei exatamente quanto tempo se passou, mas a luz da janela já não era a mesma. Nenhuma surpresa, já que agora o tempo parecia ter outra dinâmica.  Foi assim que as folhas do calendário foram rapidamente sendo arrancadas, uma por uma. Dias haviam se passado em um piscar de olhos, não, haviam se passado semanas, meses.

Na verdade, era tudo um pouco confuso, não conseguia distinguir a sensação, enquanto teclava ininterruptamente tentando entregar tudo no horário, o dia parecia interminável. Mas quando lembrava de como a vida costumava ser, parecia que não havia se passado um dia desde que entrei em quarentena.

Talvez eu esteja sendo frívola demais, ou então mau agradecida. Quantas pessoas estão lá fora arriscando as suas vidas prezando pela minha saúde? Saindo todos os dias, se colocando em perigo por mim e minha família, mantendo a sintonia da cidade. São médicos, enfermeiros, policiais, jornalistas, motoqueiros, catadores de lixo, metroviários e motoristas. São verdadeiros heróis, isso sim.

(Foto: Gabriela Reis)
(Foto: Gabriela Reis)

As máscaras penduradas no varal evidenciam as idas e vindas necessárias para manter a casa funcionando, as visitas ao mercado, ao açougue e a farmácia eram ao mesmo tempo assustadoras e necessárias. Não consigo me imaginar fazendo isso todos os dias, mas ainda assim há aqueles que fazem.

É esse pensamento que me mantém funcionando na maioria das vezes, porque não foram uma, duas, três pessoas que nos deixaram, foram milhares ao redor do globo, centenas todos os dias. Seres humanos, com família, amigos, queridos por outros, com uma vida toda pela frente.

Quem sabe os números que se repetem todos os dias nos noticiários tenham me deixado insensível. As estáticas mascaram a dor da perda que eles representam, tanto que ao entrar nas redes sociais noto a presença de um famoso conflito humano que perpetua por séculos: Por que eu devo acreditar naquilo que não posso ver a olho nu? Que não me afeta?

No final, não valhe a pena, o que faço é ignorar todo o ódio e descrédito que recebo nos comentários das matérias que escrevo, nas quais especialistas tentam explicar a delicada situação que estamos vivendo.

Insensível? Não, assustada? Talvez. Cansada? Com certeza.

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