Invisibilizadas: Quem são as mulheres violentadas e esquecidas da nossa calçada

Diariamente, milhares de cidadãs brasileiras em situação de rua enfrentam o terror do estupro, discriminação, aborto e prostituição
por
Luana Coggo
|
25/08/2020

Em meio a ruas e avenidas, viadutos e pontes, de grandes e pequenas cidades, sobrevive vasta multidão de pessoas em situação de rua, em preocupante crescimento. E junto com o aumento no número de cidadãos em estado de extrema vulnerabilidade, cresce também a violência e a desumanização por parte das milhares de pessoas que circulam pelas ruas diariamente e despercebem a presença de outros seres humanos ali - e quando percebem, ignoram. 

Dentre os inúmeros motivos que podem desencadear a ida de um cidadão para a rua, os que se destacam, segundo uma Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, realizada entre 2007 e 2008, são o alcoolismo e/ou uso de drogas (35,5%), perda de emprego (29,8%) e conflitos familiares (29,1%). Em grande parte dos casos, os motivos são interligados, como a perda de um emprego e o uso de entorpecentes.  

Fonte: Reprodução/Politize

Independente das circunstâncias, uma vez que se está na rua, o ser humano passa a estar constantemente sujeito a enfrentar problemas gravíssimos como a fome, violência, abandono e diversas questões relacionadas à saúde. Com as mulheres, o cenário se agrava ainda mais. Apesar de serem minoria entre essa parcela da população, elas lideram os casos de violência causada exclusivamente pela condição de estar na rua. Uma pesquisa feita em 2015 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) revelou que a maioria das mulheres em situação de vulnerabilidade têm em média 39 anos, pelo menos um filho, e compõem um grupo de cerca de 20% da população de rua – predominantemente formada por homens entre 18 e 45 anos. Só em São Paulo, mais de 2.326 mulheres encontram-se sem abrigo e destino. Destas, 89% sabe ler e escrever e deseja ter a oportunidade de criar os próprios filhos em uma moradia estável.

Diante de um cenário que as cercam de violência por todos os lados, cada mulher adota uma estratégia diferente para tentar sobreviver. Algumas se vestem como homens, outras descuidam da aparência, se passam por loucas etc. E mesmo reunindo todos esses esforços, elas continuam num ciclo sem perspectiva de melhora ou saída. Sem chance de uma vida digna. Também sofrem com a menstruação, estupros, assédios físicos e morais, dificuldades na maternidade etc. 

Maternidade

Ao darem à luz, as mulheres em situação de vulnerabilidade podem ficar até 6 semanas com o bebê em centros de acolhida especial para mães. Elas não podem ir para as ruas com o bebê recém-nascido. Mas, depois disso, essas mulheres têm que escolher entre dar o bebê para adoção e viver a vida sem direito a vê-lo, ou levá-lo junto para a rua, onde, mental, estrutural e logicamente falando é impossível de se criar uma criança. 

Atualmente, a maioria dos estados brasileiros conta com a rede de Consultório na Rua, que realiza assistência médica para esta população em um veículo. As mulheres gestantes são prioridade nestes atendimentos. Ainda assim, essa dinâmica não dá conta de assistir à todas as mulheres, e muitas não sentem-se seguras e/ou acolhidas e acabam fugindo ou negando esses serviços de suporte. 

Em entrevista concedida ao blog Repórter Unesp, a Doutora Mary Uchiyama Nakamura, professora associada da disciplina de obstetrícia fisiológica e experimental do Departamento de Obstetrícia – UNIFESP, explicou que gestantes moradoras de rua são “submetidas ao estresse, o que leva a complicações de estresse crônico, condição que apresenta sintomas como hipertensão arterial e distúrbio do sono.” Ademais, elas podem sofrer desnutrição, o que afeta diretamente o crescimento do bebê.

Fonte: Reprodução/O Globo

Quando falamos de gestantes que são usuárias de droga, o cenário se agrava ainda mais. A médica aponta que “a própria droga é uma substância vasoconstritora, o que causa redução no aporte de circulação sanguínea”. Esse processo pode causar déficit no crescimento fetal, além de deficiências no sistema nervoso e cognitivo. Não obstante, as substâncias químicas presentes na droga também podem causar complicações maternas, como síndromes hemorrágicas da primeira metade (aborto) e da segunda metade (descolamento prematuro de placenta e placenta prévia. Ambas as situações podem levar a mãe a óbito. 

Já nas questões legais, Cristiane Demasceno, advogada especialista em Direito Processual Penal e conselheira da OAB-DF, explicou, em reportagem produzida pela Unesp, que a mãe “não vai perder a criança pelo fato de morar na rua ou ser usuária de drogas, só se isso colocar a criança em situação de vulnerabilidade.” Ou seja, somente se a mãe deixar seus filhos sozinhos dias após dias, maltratá-los, ou deixá-los em situação de perigo ela perderá o poder familiar e o Conselho Tutelar terá permissão para tomar a guarda da criança. 

A advogada explica ainda que tudo depende muito do magistrado: “existem juízes que são mais radicais e tem outros que não. O ideal é colocar a mulher em situação de segurança para ela poder ficar com a criança.” O processo é complexo. Antes de o juiz destituir o poder familiar dos pais, “o ideal é que ele procure família extensa da criança, como avós, tios, primos, para só depois dar continuidade no processo.” Ainda assim, “se esses familiares não quiserem, eles não são obrigados a ficar com a criança”.

Portanto, ao percebermos a complexidade dos fatores que circulam a vivência das mulheres em situação de rua, notamos que diversas outras problemáticas - como o crescimento no número de crianças órfãs no Brasil, estão diretamente ligadas com a desassistência do poder público para com essas mulheres. Cidadãs que não encontram amparo mínimo para dar à luz, criar seus próprios filhos, encontrar oportunidades de trabalho e moradia etc. 

Números divulgados pelo Ministério da Saúde, referentes a 2017, apontam que as mulheres em situação de rua também são 56,3% das vítimas registradas no Sistema de Informação de Agravos (Sinan), e ainda há o eterno problema da subnotificação de casos. Pessoas negras representam 55,8% das vítimas, o que nos leva a pensar um segundo nicho de discriminação. O mesmo acontece com mulheres trans. E a violência sexual, relatada por elas, é a terceira maior sofrida pela população de rua, atrás somente da violência física, que corresponde a 93% dos casos, e da violência moral, que inclui humilhações e xingamentos. O episódio 67 do Podcast Olhares, sobre cidadãs em situação de rua, também traz, de forma tocante e realista, a vivência e complexidade de 3 mulheres, de diferentes lugares, que sobreviveram às ruas. 

Fonte: Reprodução/Agência Gênero e Número

Em reportagem produzida pela agência Gênero e Número, há o relato de uma mulher de 23 anos, cuja identidade foi protegida, que sofreu estupro 4 vezes enquanto estava morando na rua. “Quando eu acordei, tinha um cara do meu lado, com a faca no meu pescoço e o pênis pra fora”, contou. A moça, que engravidou 3 vezes em decorrência de estupros, sentiu medo, assim como muitas outras mulheres, de procurar um hospital e assistência policial para realizar o aborto - ainda que, por lei, seja permitido em casos como esse. Encurraladas pela exclusão e falta de perspectivas, as centenas de mulheres que passam por essa situação costumam recorrer à uma medida improvisada e perigosa: o chá de maconha. 

Algumas pessoas específicas - cujas identidades foram protegidas - são responsáveis pela preparação do chá abortivo. A jovem moça contou à equipe de reportagem da Gênero e Número que um dos principais efeitos dessa bebida é hemorragia intensa. Apesar do medo da morte, o pavor de ser culpada e até mesmo presa, caso recorresse a um hospital, é maior, e a jovem, assim como tantas outras, acaba passando por esse processo em extrema solidão e dor. “Eu não ia conseguir falar para o meu filho que ele veio de um estupro. E eu era uma criança, não tinha como: eu não sabia nem como cuidar de uma criança, amamentar. Então eu tirei. Eu conheci uma menina que me ensinou a fazer o chá e tomei. É um risco, mas pedi muito a Deus e a gravidez estava bem no início, então foi mais fácil”, contou. 

Fonte: Reprodução/Bote Esse

Os chás, também chamados de coquetéis abortivos, por muitas vezes serem resultado de uma mistura de muitos ingredientes e substâncias, não são apenas comuns no espaço público, entre as mulheres de rua. No Brasil, onde o aborto ainda é ilegal, a menos que a gravidez seja fruto de estupro, se colocar a vida da mãe em risco ou se o feto for anencéfalo (não possuir cérebro), muitas mulheres que engravidam indesejavelmente recorrem aos chás abortivos, em maioria feitos a partir de ervas. A diferença é que, fora das ruas, as mulheres, caso sofram complicações com o procedimento caseiro, têm mais chances de recorrer a um atendimento médico do que aquelas que dormem em cima de pedaços de papelão. 

As bebidas, que causam contrações no útero para expulsar o feto, podem desencadear uma série de efeitos colaterais, como por exemplo elevação da pressão arterial, dores uterinas,  enjôos, vômitos, contrações antes do momento e em alguns casos forte dor de cabeça, febre e até desmaios. Em casos mais graves, a mulher corre o risco de sofrer hemorragia intensa e, caso esteja na rua e não seja encaminhada a um hospital, pode morrer. Além de todos os sintomas, a eficácia do chá pode falhar e resultar na má formação do bebê, nascimento fora do peso, parto prematuro, entre outras complicações indesejáveis. E apesar de tamanha complexidade e gravidade do assunto, essa é apenas uma das inúmeras situações que as mulheres em situação de rua enfrentam. 

Fonte: Reprodução/Agência Gênero e Número

O 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 2019 pelo Fórum Brasileiro, revelou que, em média, 180 mulheres são estupradas por dia no Brasil - uma média de 65.700 casos no período de um ano. Entretanto, essa média leva em conta os crimes registrados. Assim como o medo de denunciar abusos e agressões cala a voz das mulheres no espaço privado, o silêncio das mulheres em situação de rua é comum nas relações de exploração, abuso sexual e de dependência química. As opressões e problemáticas vivenciadas na rua nada mais são do que um reflexo escancarado a olho nu do que somos e reproduzimos enquanto sociedade.

Portanto, a situação brasileira é triplamente complexa. Envolve questões de saúde pública, quando trata-se de abortos invalidados, ainda que frutos de estupro; maternidade, que abraça mães que perdem a guarda de seus filhos para o Estado, sem chance de defesa ou escolha de encaminhamento para abrigos, além de roubos e espancamentos, causados diariamente por homens que também estão em situação de rua, pedestres preconceituosos e, em vezes, força policial. Em diversos estudos e relatos, essas mulheres revelaram que sentem-se desassistidas pelo poder público, e muitas vezes o temem.  

Maria da Graça Jesus Xavier, coordenadora da União Nacional por Moradia Popular, disse, na 4° edição do “Ciclo de Debates sobre Gênero e Direitos Humanos”, evento organizado pela Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, em parceria com a Defensoria Pública da União (DPU), que “A moradia é a porta de entrada para todos os outros direitos. Na hora de estudar ou trabalhar, a falta de endereço é um problema. Por isso, muitos desistem”. No mesmo evento, realizado em 2019, pesquisadores contaram sobre relatos de mulheres que diziam se sentir como baratas ao dormirem na rua. Muitas também acabam sentindo-se culpadas por fazerem sexo em troca de um alimento ou droga. Maria da Graça, palestrante principal, ainda instigou os participantes a refletirem sobre a situação de uma mulher menstruada, em situação de rua, em um dia de chuva. 

Menstruação

Dores, inchaço abdominal, cansaço, ansiedade, irritabilidade. Esses são os sintomas que a maioria das mulheres costuma sentir no período da menstruação. Apesar de serem questões de extremo incômodo, é importante pensarmos que as mulheres que vivem nas ruas também são obrigadas a passar por esse período. Entretanto, elas não têm condições básicas de higiene, acesso a medicamentos para cólica e desconfortos causados pela menstruação, nem mesmo têm absorventes íntimos à sua disposição. 

Em reportagem produzida pelo blog Inciclo, diversas assistentes sociais que trabalham com pessoas em situação de rua contaram que, pela falta de absorventes, a maioria das mulheres recorre a miolos de pão, plásticos diversos, meias, rolhas e sementes de fruta. Entretanto, por serem materiais insalubres e impróprios para o período menstrual, muitas vezes elas enfrentam infecções, dores e desconfortos anormais à menstruação comum. Neste vídeo, produzido por um canal norte-americano, é possível exemplificar um pouco mais a rotina das mulheres em situação de rua no período menstrual. Uma das entrevistadas relatou que o preço de um absorvente corresponde mais do que ela costuma gastar em uma refeição que divide com o companheiro; ou seja, elas têm que, literalmente, escolher entre se alimentar e suprir parcialmente necessidades humanas básicas. Para tentar amenizar os efeitos humilhantes do período, as mulheres que estão na rua também costumam recorrer a banheiros públicos, de parques e metrôs, para se lavar e conseguir papel para estancar o sangue.

Fonte: Reprodução/Vittude

Atualmente, alguns programas sociais vêm se ocupando em distribuir absorventes, mas várias das mulheres em situação de vulnerabilidade sentem-se envergonhadas de pegar, o que nos mostra como o tabu sobre a menstruação é grande, mesmo em situações extremas de necessidade, em uma sociedade teoricamente desenvolvida e mais liberal. O projeto “Mulheres Invisíveis”, idealizado por três estudantes do ensino médio do colégio estadual Culto à Ciência, busca dar visibilidade e assistência às mulheres de rua no período menstrual. Com página no Instagram e no Twitter, o projeto arrecada principalmente absorventes diários, mas também aceita outros itens de higiene, como desodorantes, pastas e escovas de dente.

Fonte: Denny Cesare/Código19

Outro movimento que vem ganhando força nos últimos meses é o 'Cadê o Absorvente?', idealizado pelas empresas co irmãs Herself e Herself Educacional, que atuam no combate à pobreza menstrual desde 2018 e denunciam o tabu acerca do assunto. As empresas lançaram um abaixo-assinado na internet para chamar a atenção da sociedade ao fato de que 26% das adolescentes brasileiras, entre 15 e 17 anos, não têm acesso a produtos higiênicos durante o período menstrual. O dado faz parte de uma pesquisa realizada há 2 anos pela marca de absorventes Sempre Livre. 

Além da pressão política para mudanças e elaboração de projetos de lei, o movimento “Cadê o Absorvente?” também promove ações educativas em comunidades, reunindo profissionais da saúde e da educação, ativistas, coletivos e pesquisadoras com o objetivo de combater a pobreza menstrual a partir de informação e soluções de protetores menstruais que atendam as especificidades de cada localidade. 

A petição online, que já conta com mais de 40 mil assinaturas de apoiadores, está aberta na plataforma Change.org. Dentre as exigências propostas na petição estão a distribuição e acesso a absorventes sustentáveis em postos de saúde, presídios e outros locais públicos, o apoio, incentivo e criação de cooperativas de produção de absorventes sustentáveis com mulheres em situação de vulnerabilidade, em situação de rua ou de cárcere e a garantia de acesso ao saneamento básico. Ter acesso a absorventes não deve ser uma condição de luxo, e sim um direito a todas as cidadãs brasileiras, incluindo homens trans, que também menstruam e são esquecidos no assunto.

Fonte: Reprodução/SP Invisível

Apesar de muitos dos depoimentos das mulheres conversarem entre si – no que diz respeito a similaridade nas fragilidades das políticas de habitação, saúde, educação, emprego, assistência social e segurança no cotidiano delas, é preciso lembrar que cada cidadã que ali se encontra tem uma vida completamente única, e uma trajetória que começou muito antes das ruas. 

Fonte: Reprodução/Rede Brasil Atual

Portanto, além de analisarmos a realidade da mulher em situação de rua, é necessário ampliar o olhar para a relação dela com sua própria vivência, feminilidade, sonhos e dores pessoais. Apesar de já existirem diversas medidas e programas de assistência por parte do governo, como abrigos, caravanas de médicos e profissionais da saúde que vão às ruas assistir às mulheres, essas cidadãs ainda sentem-se muito desfalcadas pela situação. Como disse Elicarla Álvares, ex-moradora de rua, em entrevista à agência Gênero e Número: “As mulheres na rua se sentem menores, menos pessoas, menos mulheres. Ali, seus direitos são violados. Elas não têm com quem desabafar, não têm assistência alguma. É muito raro alguém ouvir uma mulher em situação de rua.”

As outras

Além de todas as problemáticas citadas, a vivência feminina nas ruas torna-se ainda mais complexa quando ampliamos o olhar para a perspectiva da mulher trans. Assim como Simone de Beauvoir bem explicou em “O Segundo Sexo”, a mulher não é definida em si mesma, mas em relação ao homem e através do olhar do homem. Esse olhar de subordinação representa o que Simone chama de “o outro”. Ela explica que esta categoria do outro é antiga e comum, e nas mais primitivas mitologias e sociedades já se encontravam presente uma dualidade: a do Mesmo e a do Outro. Ou seja, essa determinação propõe que o indivíduo só se reconhece e se estabelece como tal, se em contrapartida apontar um ser inessencial, o objeto, o outro.

Posteriormente, Grada Kilomba ampliará a discussão para falar que a mulher negra, por exemplo, é o outro do outro, posição que a coloca num local de mais difícil reciprocidade. O mesmo podemos aplicar para as mulheres trans, brancas e pretas, em situação de rua. Nem mulheres cis, nem homens cis, sem classe financeira estabelecida, essas mulheres sofrem os silenciamentos e violências simbólicas e físicas do ambiente hostil da rua de forma triplamente rigorosa. Se o machismo e a violência policial já perpassam a vida das mulheres de rua de forma avassaladora, podemos imaginar que, para transsexuais, essas são apenas algumas das barreiras que unem-se com a transfobia, o preconceito e demais discriminações exercidas em decorrência do gênero. 

Cassiano Bovo, cientista social especializado em estudo de vivência de mulheres transsexuais, com foco em violência policial, explica que esse nicho é um dos mais afetados na rua: “as mulheres trans, ao meu ver, são as pessoas que mais sofrem. Na maioria das vezes foram rejeitadas pela família, por não se adequarem à escola muitas vezes são obrigadas a largar os estudos, muitas não conseguem empregos e são obrigadas a se prostituir, e na prostituição sofrem muita violência”. O cientista relata que a prostituição acarreta uma série de fatores problemáticos na vida da mulher trans, que dificultam não só sua saída das suas, como sua própria sobrevivência. Além de agressões físicas e morais, muitos clientes obrigam-as a usar droga e, por conta desse trabalho ser a única fonte possível de sustento, elas acabam usando e caindo no vício e até mesmo no tráfico, para sustentar a dependência. “ A prostituição é uma porta para esse universo”, diz Cassiano.

Portanto, chegar até a rua não é uma escolha, muito menos algo repentino. “A rua acaba sendo o fim da linha de uma sucessão de desgraças que as mulheres sofrem durante a vida, quando na verdade o que ela precisava realmente era uma acolhida”, diz o cientista. Para chegar até ali, essa mulher foi despachada da sociedade e todos os seus nichos - afetivos, estruturais e financeiros. É o fim da linha.

Todos esses fatores de exclusão, antes e após a chegada dessas mulheres nas ruas, são essenciais para entendermos o porquê da expectativa de vida delas, no Brasil, ser de 35 anos, enquanto a do restante da população brasileira é de 75,5. O Brasil é o país em que mais pessoas transgêneras são assassinadas no mundo. Mas por que?

Para Cassiano, isso se dá pois “ao invés delas serem acolhidas pelo poder público e pela sociedade, elas são rejeitadas. Elas são mal vistas, incompreendidas, sofrem com a intolerância”. Janaína Dutra, ativista, chega a comparar a travesti com uma ilha, mas ao invés de estar cercada de água por todos os lados, está cercada pela violência. Por isso, a maioria das transsexuais em situações de rua procuram permanecer juntas, criando um esquema de co-proteção. Elas permanecerem unidas “é uma forma delas se fortalecerem contra uma série de investidas. A violência na rua perpassa esse grupo de diversas maneiras”, explica Cassiano. 

Entretanto, seria um equívoco anunciarmos que essas mulheres, uma vez na rua (em decorrência de uma série de opressões e exclusões), estariam mais livres de preconceitos da sociedade “padrão”. Nas calçadas e vielas sem leis, mulheres trans encontram-se fadadas a outro ciclo de violência e continuam sendo triplamente oprimidas. Há inúmeros relatos de mulheres trans que contam que, mesmo quando conseguem vagas em albergues, não sentem-se acolhidas, confortáveis para utilizar os banheiros e dormitórios, e ainda sofrem discriminação pelas outras pessoas que ali se encontram. Cassiano explica que isto é resultado de uma sociedade onde as arquiteturas foram construídas, desde as escolas até os albergues, para mulheres e homens cis. Mulheres trans nunca entram em pautas sociais e muito menos são consideradas como merecedoras de recursos e atendimentos especiais.

Para esse desastroso e assassino cenário, é preciso a adoção de pequenas e grandes medidas que reformulem, de forma gradual, a forma como a sociedade e os governos lidam com essa problemática. “O poder público precisa ter políticas para evitar que elas cheguem à essa situação, cotas para emprego, renda básica, apoio educacional. Chegando numa situação dessa, deve existir um atendimento específico para casos droga, métodos de higiene - tudo especializado”, explica Cassiano. 

Além disso, é fundamental que desenvolva-se mais casas de acolhida especializadas no atendimento de mulheres trans, com profissionais que trabalhem em conjunto com pastorais e associações que compreendem a singularidade, a vivência e os anseios mais urgentes  dessas cidadãs. Casas onde elas sintam-se realmente seguras e protegidas, com chance de recuperação e saída das ruas. Cassiano nos lembra de algo fundamental: “ninguém vai pra rua porque quer”. Então, é preciso, antes de tudo, olharmos para essas mulheres e atendermos suas necessidades. Que elas possam ter o poder de escolher a prostituição, e não estejam fadadas a ela e seu acarretamento de consequências negativas. Para nos dar um respiro de esperança, aqui você encontra dezenas de iniciativas pensadas para pessoas transgênero :)

Portanto, falar sobre a mulher brasileira em situação de rua é muito mais do que saúde, pobreza, fome e violência. É voltar o olhar para todo o histórico de repressão imposto pela sociedade patriarcal machista em que vivemos, que silencia mulheres nas esferas pública e privada e a colocam, sempre, em segundo plano. Por séculos, a mulher foi privada de sua própria cidadania, e apesar dos emergentes movimentos sociais, como o feminismo, estarem ganhando força, direitos e conquistas nas últimas décadas, é fundamental olharmos para aquelas que estão sendo, mais uma vez, deixadas de lado. 

As mulheres cujos corpos e saberes experimentam as ruas diariamente encontram-se em uma lacuna de direitos. Desprotegidas e atacadas por todos os lados, unem-se para tentar sobreviver ao horror da solidão. Vivem em uma guerra injusta e imoral contra um time formado pelo esquecimento estatal, machismo, desassistência média e desrespeito social. Gritam por socorro todos os dias e noites em nossas calçadas, e nós, enquanto sociedade, nos fingimos de surdos. As mulheres que estão na rua são resistência. São corpos e mentes sobreviventes. São revolução. 

 

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