“Meu filho chegou a se alimentar de papel higiênico e de creme dental para matar a fome, enquanto estava preso”, conta Miriam Nunes, uma das fundadoras da Associação de Familiares e Amigos de Presos (Amparar). Com voz trêmula e olhos marejados, ela explica que a comida não é servida na quantidade e qualidade para que uma pessoa se mantenha saudável.
Dentre as 96 penitenciárias de São Paulo, a fome é uma reclamação dos detentos na maioria delas. Segundo o ex-conselheiro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Ribamar Araújo, “se naturalizou que, mesmo estando sob custódia do Estado, essas pessoas passam fome.”
“A questão da comida no sistema prisional é: a comida é pouca. Se chega um café da manhã, um almoço, eles comem em horários desregulados. Muitas vezes, passam mais de 24 horas sem se alimentar”, aponta Miriam.
Ela fundou a Amparar ao notar as condições de seu filho, na época em que foi preso na antiga Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (FEBEM). No mesmo período, recebeu diversas denúncias de que os adolescentes apreendidos estavam em condições deploráveis e insalubres.
“Nós ficamos muito preocupadas, porque eles estão num ‘cemitério de mortos-vivos’. Na Amparar, acreditamos que isso seja uma jogada para eles não conseguirem pensar, para eles não terem energia de pensar. A fome é uma forma de ter controle desses corpos”, afirma.
Ela contou ainda que o trabalho da Associação começou através do fortalecimento entre familiares que não se sentiam amparados por nenhum órgão público. As voluntárias visitam Centros de Detenção Provisória (CDP) e oferecem atendimento individual de apoio às famílias.
A população carcerária em São Paulo chegou a 209 mil pessoas no ano de 2022, de acordo com informações da Defensoria Pública. Ribamar, ex-conselheiro do Consea, já visitou penitenciárias em todas as 27 unidades da federação para estudar o tema que aponta ser problema em praticamente todo o território nacional.
“Por uma questão de economia de combustível, em alguns casos, o transporte responsável pela comida dos detentos já leva café, almoço e janta. Então, o almoço é servido frio e, a janta, azeda”, conta.
Segundo ele, frequentemente as refeições são atrasadas por questões pessoais dos funcionários. Quando um deles está de mau humor, por exemplo, a entrega da alimentação é oferecida ainda mais tarde do que o previsto.
Ribamar aponta que comportamentos assim fazem os detentos passarem longas horas sem comer, os colocando em uma situação de insegurança ainda mais delicada. Ainda assim, o ex-conselheiro do Consea explica que o Estado tem consciência sobre o problema da fome nos presídios, e a usa como uma ferramenta de punição.
Para ele, a negação do Direito Humano à Alimentação Adequada, converte-se em vetor de tratamento cruel, desumano e degradante. “A fome é uma ferramenta de tortura, e a pena de fome condena as pessoas à pena de morte”, afirma.
Vale lembrar que a Constituição Federal de 1988, através da Lei de Execução Penal, garante o direito à alimentação adequada para a população privada de liberdade. Como garantido no Artigo 12, “a assistência material ao preso e ao internado consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas”. Já no Artigo 40, impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios; E por fim, o Artigo 41, que constituem os direitos do preso: alimentação suficiente e vestuário”.
Para Luciana Zaffalon, diretora-executiva do JUSTA (ONG responsável por facilitar o entendimento e a visualização pela melhora da segurança pública e da justiça criminal), o descaso com a dignidade dos detentos ocorre também por uma questão orçamentária das políticas de segurança e prisional.
“A perspectiva de prender cada vez mais pessoas, sem respeito aos direitos básicos que lhes deveriam ser garantidos, como se fosse um caminho possível para efetivar a segurança pública, se mostra irracional também em sua dimensão orçamentária”, afirma Luciana.
Assim como Ribamar, ela destaca a Lei de Execução Penal, e aponta: “Observamos nas políticas prisionais um grande paradoxo: as pessoas são presas pelo Estado por violarem a legislação e, quando estão nessa condição (de encarcerados), passam a viver uma rotina de violações por parte do Estado, que descumpre sem qualquer pudor a legislação que deveria aplicar”.
Ela afirma ainda que há farta literatura que trata do surgimento de organizações como o PCC atrelando esse fenômeno à ausência do Estado. Com isso, ele, ao naturalizar omissões e violações, ao invés de exercer o papel que lhe é determinado por lei, cria ambiente fértil para que novos arranjos sejam forjados.
Luciana aponta que a solução é simples e clara: o Estado deve seguir a legislação vigente. Para ela, o problema da fome nos presídios só poderia ser plenamente sanado através do cumprimento das leis, principalmente a de Execução Penal.
Em resposta aos questionamentos feitos pela reportagem, as unidades prisionais pertencentes à Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo informaram que são oferecidas quatro refeições diárias. Elas são compreendidas por café da manhã, almoço, jantar e ceia noturna aos presos.
Para Daniel Balaban, Diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos (WFP) da ONU no Brasil, “Fome se caracteriza pela carência alimentar por períodos longos, causando sensação de desconforto e dor”.
Ao pensar nas estratégias de combate à fome nas prisões, Daniel reforça o pensamento de Luciana de que “é necessário o cumprimento das políticas públicas que permitam o acesso a uma alimentação digna, e que sejam eficazes em casos de pessoas que dependem de outras para se alimentar, como é o caso do sistema prisional”.
Uma mãe no presídio
A fome que impacta o mundo tem sido protagonista na tortura do sistema prisional. A reportagem conversou com a mãe de um detento, que preferiu não se identificar. Em respeito à sua privacidade, terá seu nome substituído por Maria. “Tem momentos que eu não quero nem comer, porque eu não sei se o meu filho comeu”, conta ela com os olhos marejados.
Maria contou que, apesar da Administração Penitenciária informar que é servida uma refeição balanceada, quando a marmita chega, são dois dedos de comida e as carnes são transparentes.
Ela explica também que, na prisão, existe o jumbo, que é uma lista padronizada de itens que as visitas podem levar. Porém, não têm condições financeiras de mandar um jumbo toda semana e, por isso, leva “o básico” mensalmente.
“Não consigo ir sempre fazer uma visita, mas quando eu consigo, eu vou. Só entra uma sacola, o que limita muito. A sacola não é tão grande, então você leva o que dá”, aponta. Maria ainda completou dizendo ser impressionante o quanto os detentos conseguem fazer a comida render entre si.
Ela acredita que servir para os presos uma quantidade de comida que só seria suficiente para crianças de cinco anos é uma forma de tortura modernizada para controlar quem está dentro dos presídios.
“Eles podem ficar horas e horas sem comer nada. Como alguém pode sair saudável desse lugar? Como um ser humano sobrevive?”, questiona.
Tanto Maria quanto Nunes apontaram que o corpo dos detentos sofre diversas mudanças por conta da situação. Após um período na cadeia, quando saem, há um longo processo de adaptação. Enquanto isso, quando se alimentam em condições ideais, passam mal.
“Está tão penetrado neles, que acham que comer uma boa quantidade de comida vai fazer com que eles passem mal. Até voltar a comer bem, leva bastante tempo”, afirma Nunes
Durante a pandemia
Um estudo realizado pela Amparar e a Fundação Getúlio Vargas (FGV), concluiu que 34% da população carcerária estava com dificuldades de se alimentar. Maria afirma que seu filho foi preso bem no auge da pandemia, ou seja, em outubro de 2020. Ela conta que, neste período, sofreu muitas dificuldades.
“Tivemos denúncias de que a comida fica perto de lixo, exposta. Falam que a escravidão acabou, mas a gente pode ver isso na relação dentro do sistema prisional, através da comida.” aponta Maria.
Outro fator que se agravou durante a pandemia foi o recebimento do jumbo por parte dos presos. Muitas vezes, as famílias tiram o que têm de casa para levar para seus filhos na prisão.
“O jumbo é uma despesa. Às vezes você pode gastar 400 reais num jumbo, minimamente. É mandar o jumbo 1 vez por mês, se satisfazer com aquilo.” lamenta Maria.
No final da entrevista, Maria lamentou ainda a dificuldade de promover mudanças no sistema carcerário: “As coisas não mudam, aumentam a quantidade de presos e a comida só diminui. A pessoa está privada de liberdade, não deveria estar privada de comer.”