Por Felipe Achoa
Na vida, tudo começa bem cedo. Os aprendizados, os ensinamentos, os primeiros passos. Cacho, como a maioria, teve de aprender muitas coisas prematuramente, sua avó sempre o corrigia quando ele roubava frutas de uma árvore de outro terreno ou causava pela vizinhança. Não havia má intenção, na verdade, apenas um tanto de inconsequência no efeito de suas ações. Ainda assim, sua avó sempre foi muito carinhosa, desde crianças ela já ensinava a Sérgio e seus irmãos como escolher frutas, estipular preços, bem como, tudo sobre sua profissão e os fazia acompanhá-la em todos os dias de feira. Juntos, iam às compras nas madrugadas de terças-feiras, era cansativo, mas a verdade é que tinha alguma coisa especial ali, talvez o lugar, que parecia ser efetivamente divertido, ou simplesmente o tempo passado com a sua ancestral, que completava sua pessoa.
Era uma época tranquila mas os tempos mudam como as marés. O caos se instaura do nada. Como criança, Cacho, não lembra de muitas coisas, mas o suprassumo, o principal, marcou sua vida de forma permanente. As cores, os contrastes, a fluidez da cidade que era transcendida por linhas férreas. E como esquecer o soar do bonde, o barulho que ele fazia quando estava próximo e o puxão que sua avó lhe dava para subirem a bordo. Era tudo harmônico, os dias mais cinzas se transformavam em um arco-íris, de pessoas, de estilos, de estética da cidade.
As manhãs de calor que “derretiam” o rosto de sua avó e destacavam suas rugas, provindas de muito trabalho e de todo seu esforço ao longo de sua história para propiciar uma vida melhor à sua família. As penumbras das madrugadas e sua beleza indescritível, que reconfortavam seus corpos cansados após as curtas noites de sono. Tudo tinha um brilho diferente. Dizem que ela é cinza, mas a cidade esconde sua verdadeira paleta. O sol quente da manhã preenche o espaço com uma luz brilhante que reflete as cores das frutas, tornando-as mais vivas, mais chamativas, as pessoas mais felizes e a melanina enriquecida. O tempo flui como uma pena em uma tempestade, isolando-o do resto do mundo e valorizando a leveza das pequenas coisas. É como se o centro do planeta fosse a feira e a pluralidade presente nela, de tantas verduras, de tantas pessoas, de tantas cores…fosse seu elemento mais primordial.
Desde que se lembra por gente, Ekeda já trabalhava com sua matriarca nas barracas pelas manhãs, como para muitos, a feira foi um caminho natural, veio de família, era parte de sua essência. Nunca foi um sofrimento, Cacho reconhece a função com grande valor, pois sempre fez com muito amor e foi o que colocou comida na mesa de sua família por gerações, apesar de sempre ter sido altamente desgastante, em especial no âmbito de saúde mental, visto o número insano horas trabalhadas e a necessidade de lidar diretamente com o público, o que não é nada fácil. Mas para alguém que literalmente nasceu fazendo isso, o cansaço se torna, de alguma maneira, banalidade, se esconde no pragmatismo da rotina. Como sua avó dizia, o sol nasce para o feirante, quando a noite é mais escura, quando a rua é mais vazia e a verdade é nua e crua. Por isso, nunca foi uma pessoa de reclamações ou objeções, pelo contrário, buscou fundamentar seu trabalho na dedicação e no esforço.
Sérgio Schigueo Ekeda
Foto por: Aisonia Ekeda
A feira é um lugar peculiar, de certa forma, lúdico. Um relance de dias obsoletos em plena modernidade. Por um lado, trás ao ar antigas formas de fazer negócio, relações interpessoais mais verdadeiras, um ambiente, talvez arcaico em alguma medida, mas extremamente melancólico. Por outro, instaura fenômenos sociais do passado pouco valorizáveis, como muitas horas trabalhadas, muito esforço envolvido para que seja possível garantir ao menos o básico para a subsistência de sua família, pouca ou nenhuma segurança trabalhista e uma baixíssima preocupação com a saúde mental do trabalhador.
Cacho trabalha seis dias da semana, todos em feira livre, saindo de casa em torno de três horas da manhã e voltando apenas no final da tarde. Nos dias em que o “CEASA” acontece, sábados e domingos, chega em casa apenas em torno das dezenove horas, o que totaliza quase vinte horas de trabalho. Exausto, exaurido, mas sempre alegre, uma pessoa leve; apesar de nunca ter tido uma lesão séria, o neto de dona Benta já viu muitos colegas de profissão se machucando por falta de atenção na execução de tarefas diárias, o que sempre o impôs uma pressão mental cotidiana para que não passasse pela mesma infelicidade.
Desde a morte de sua avó há alguns anos, Sérgio assume ter entrado em uma filosofia de trabalho intensa; eles tinham uma ligação muito forte, Benta foi quem cuidou dele durante toda a infância e o educou, ensinou a ele tudo o que sabe. Em meio à uma carga horária tão intensa, pouca ou nenhuma segurança trabalhista, o contato com as pessoas durante todo o período de trabalho(o que diversas vezes é extremamente estressante) e as pressões diárias que assolam o trabalhador brasileiro, especialmente no caso dos comerciantes informais, como o medo de não conseguir o montante necessário para fechar o mês, os riscos envolvidos no trabalho e a própria precariedade deste, em muitos casos pode-se observar o desenvolvimento de insalubridade mental e ou outros problemas relacionados à saúde psíquica, especialmente quando aliados à grandes traumas como no caso de Cacho e a perda de um ente tão querido.
O Ministério da Saúde reconhece que o estresse e a ansiedade crônicos, a sobrecarga de trabalho e a exposição a situações extremas podem levar ao esgotamento mental e a transtornos mentais, além de destacar traumas, pressão, jornadas excessivas e falta de reconhecimento como possíveis agravantes destes casos. Logo é fundamental priorizar a saúde mental dos trabalhadores visto que as taxas de suicídio no País, de acordo com dados da OMS é a oitava maior da Terra e esse numero segue crescendo nas Américas e apenas no continente, pois no restante do mundo a taxa caiu mais de trinta por cento entre dois mil e dois mil e dezenove.
Cacho já não tem mais o mesmo ímpeto que tinha antes, por mais que ainda ame o que faz, não enxerga as coisas da mesma forma brilhante como nos tempos de sua avó. O lúdico já não se torna tão mágico, as cores são mais em tom pastel, os cheiros não o encantam da mesma forma como era na infância. Sua energia não se esvaiu por completo, mas após tanto tempo submetido a essas condições de trabalho, o paulista já não apresenta o mesmo ânimo que tinha nos primórdios de sua trajetória, aquela animação contagiante, aquele sorriso tão único que todos da feira comentam. Parte deve-se a morte de sua avó, que certamente era sua maior inspiração na vida, mas é nítido que a realidade do trabalho na feira ainda é extremamente agressiva e custosa para o corpo e a mente humana e é fundamental que os trabalhadores procurem formas de inibir ou ao menos evitar que esse tipo de adversidade os atinja.