A vida em casa entre as paredes, portas e janelas parecia ser o que a gente sempre quis. A queixa da falta de tempo no dia a dia, que não permitia usufruir do lar, agora não faz mais sentido. Dizem que a vitamina D é essencial nesse momento de isolamento, por isso vou até minha janela da sala toda manhã, entre o intervalo de uma aula e outra. É engraçado a intensidade que sinto o sol tocando minha pele agora. Antes eu andava na rua apenas focando nos milhares de pontinhos da minha agenda que eu precisava cumprir, mas agora alguma coisa parece diferente. O sol está mais quente ou sou eu que estou mais fria precisando dele?
Minha quarentena estava indo bem, na medida do possível. Vivendo dos meus privilégios entre as diversas paredes brancas da minha casa. Dormindo, acordando e fazendo alguns exercícios físicos que nem na vida comum eu faria. Os números na televisão só crescendo, a necessidade de humanizar a principal prova de que nossa vida é finita, a morte.
Foram 86 anos vivendo nesse planeta. Meu avô não foi mais um número da Covid-19, mas foi mais uma pessoa que nos deixou provando que a vida acaba para todo mundo. Foi a partir desse momento que o significado de vida e morte se ressignificou pra mim, então o aperto no peito passou a fazer parte da minha rotina da quarentena.
E tinha que ser agora vovô? Eu fico me perguntando isso repetidamente e a resposta é sempre a mesma, em qualquer momento que fosse seria uma perda imensurável. A pandemia limitou nossos encontros e nisso se foram quase dois meses sem se ver, agora nunca mais. Os últimos encontros e conversas foram por vídeo. Se adaptar a esse novo mundo tecnológico para conseguir demonstrar o afeto que tanto faz falta nesses tempos de distanciamento social.
Confesso que quando comecei a escrever esse texto eu não fazia nem ideia do que estava por vir nessa quarentena, parecia que tudo já estava ruim demais para piorar. E como tudo nessa vida consegue nos surpreender, dessa vez foi o coração do meu avô que não aguentou. Agora eu fico aqui escrevendo e errando o tempo verbal das palavras, é difícil colocar no passado aquilo que ele costumava fazer todo dia. O estranho é que agora a dor que está no meu coração também é tão forte que, parece que nunca mais vou conseguir ficar feliz novamente.
Desde o início do isolamento social meus dias já estavam devagar, mas agora está quase impossível ficar olhando pro relógio. Aqueles ponteiros estão girando de maneira tão lenta, parece que meu sofrimento se prolonga a cada minuto que passa. Que injusto é esse tempo, por que não passou mais devagar enquanto meu avô ainda estava aqui com a gente? Que injusto é esse tempo.
Dentro da minha própria casa estou me sentindo numa montanha-russa. É aquele sentimento de frio na barriga quando está subindo e perda de todo controle emocional quando está descendo. Meus dias agora são assim, algo tão inexplicável que ninguém deveria nunca precisar entender, e muito menos sentir. Cabe a eu mesma dar quantas voltas forem necessárias nessa montanha-russa para tentar não me sentir mais tão insegura em um mundo sem meu avô.
Não é pouco, são 21 anos sendo a neta mais velha. Aquela que foi a primeira em tudo. Na mesma intensidade que eu ia aprendendo o significado da palavra vovô, ele também ia aprendendo o significado da palavra neta. Um aprendendo e errando com o outro, assim se constrói aquilo que chamamos de amor. A cada pão de queijo que ele ia buscar na padaria quando eu pedia, em cada massagem que ele fazia nas minhas costas e falava que tinha dó de parar, porque eu gostava muito. Tudo isso se resume em amor, e são essas lembranças que quero comigo para sempre.
Engraçado que lembrar desses momentos também é muito dolorido. Quanto mais memórias chegam, mais as lágrimas descem. Eu já nem sei mais quando estou chorando ou sorrindo, já nem sinto mais meu olho embaçado. O único sinal que tenho é quando meus olhos começam arder, como se quisessem dizer “hei, chorar não vai mudar nada”.
Essa minha realidade de quarentena é parecida com a de muitas pessoas que estão perdendo familiares nessa pandemia. Mesmo que meu avô tenha sido morte natural, o sentimento de nunca mais poder ver alguém é horrível demais para ser vivido. Esse aperto no peito parece que vai sufocar, ainda mais estando entre as paredes de casa, sem poder ir lá fora se distrair. Essa prisão da quarentena estava mais fácil quando eu tinha que lidar só com ela, mas quando a dor chegou para acompanhar, ficou quase impossível.
Ver minha família sofrendo me quebra em pedacinhos que vão demorar algum tempo para se refazerem. O medo de esquecer os mínimos detalhes vividos com ele me atormenta. A impotência de não poder lutar contra a ordem natural da biologia humana me enraivece. E assim vou seguindo cada dia que resta desse isolamento social, que agora me afeta em outra dimensão, me priva de abraços atenciosos que valeriam muito nesse momento de vulnerabilidade.
Não saber o que esperar me deixa ansiosa. Será que vai demorar muito para eu receber um abraço de um amigo? E até quando vou ficar com esse sentimento estranho dentro de mim? Um texto com tantas perguntas que ninguém pode me responder, somente vou saber enquanto viver. Minha avó me disse para parar de chorar porque “é tipo passarinho quando molha a asa, ele não consegue voar em paz”, então decidi seguir o conselho dela e deixar meu avô voar em paz. Com a gente fica só a saudade, essa só vai aumentar.
Imagem da capa: Adriane Garotti