Por Felipe Achoa
Marco conheceu Paula ainda no final da adolescência. Ambos tinham vinte anos quando começaram a namorar, e, como muitos casais jovens, foram tomados por uma paixão intensa e um senso de urgência diante da vida. Casaram-se pouco tempo depois. Marco trabalhava na área comercial e Paula cursava administração, ainda que com dificuldades para manter o foco. O nascimento de Pedro aconteceu quando os dois tinham apenas vinte e quatro anos. Marco se lembra até hoje da primeira vez que o segurou nos braços: o choro forte, a pele enrugada, os olhos ainda fechados. Foi o momento mais sublime de sua vida. Mas também foi o ponto em que tudo começou a mudar.
Nos primeiros meses, a rotina cansativa com um recém-nascido colocou à prova o relacionamento do casal. Paula passou a apresentar mudanças de humor constantes. Marco, ainda inexperiente, atribuía tudo ao "baby blues" (tristeza pós-parto), mas logo percebeu que havia algo mais profundo. As saídas noturnas características do passado conturbado de Paula voltaram, acompanhadas do cheiro de bebida em seu hálito, eventualmente, de substâncias que Marco não conseguia identificar, mas intuía. As brigas se tornaram diárias. Paula, por vezes, desaparecia por horas, voltando apenas na manhã seguinte, enquanto Marco, desesperado, cuidava de Pedro e tentava esconder do filho, ainda muito pequeno, da confusão que se instaurava em casa.
Com o tempo, Paula se ausentava por dias. Marco implorava por ajuda, por compreensão, por mudança. Tentou conversar, eles até chegaram ao consenso de interná-la voluntariamente. Em alguns momentos, ela parecia disposta a tentar, mas as recaídas vinham com força redobrada. Quando Pedro completou dois anos e seis meses, Paula saiu de casa após uma discussão particularmente ácida. Foi a última vez que Marco a viu sóbria por muito tempo. Depois desse episódio, o clima da casa era sinistro, Paula não ficava por lá, não se sentia confortável ali. Marco não trabalhava muito e cuidar de Pedro e Paula simultaneamente estava explicitamente lhe custando a alma. A decisão de interná-la veio após um episódio em que ela foi encontrada desacordada, sozinha, em uma praça próxima. O medo de que ela morresse falou mais alto. A mãe de Paula interviu e pela primeira vez, a moça aceitou ajuda de verdade. Eles assinaram os papeis da internação com o coração em pedaços. Ela precisava de cuidados, mas agora ele também precisava cuidar de Pedro e de si. Não havia tempo para refletir.
Um pai, só, cuidar de Pedro sozinho se revelou uma missão árdua. Marco passou a acordar às cinco da manhã para preparar o café, arrumar o filho, levá-lo à creche e correr para o trabalho. Quando Pedro adoeceu, Marco perdeu três dias de serviço. Chegou muito perto de ser demitido, afinal, não havia ninguém mais com quem deixar Pedro; sua ex-sogra, fazia questão de recebê-lo, mas estava idosa, muito mal de saúde. Não haviam opções viáveis. Sem rede de apoio, Marco viu seu salário ser consumido por babás improvisadas, consultas médicas, roupas, comida e brinquedos. No Brasil, segundo dados do IBGE, 11,6% das famílias são ordenadas por homens sozinhos e filhos, mas o debate sobre a vulnerabilidade desse grupo ainda é escasso. Para ele, o que restava era cobrança para dar conta, para não fraquejar, para resolver o problema. Faltava tempo para tudo. A cada final de semana, a lista de tarefas domésticas parecia se multiplicar; Marco tentou se relacionar de novo, mas a rotina caótica tornava tudo difícil. O tempo se tornou líquido, escorria por seus dedos como se fosse água, se esvaia como pó; ele mal tinha tempo para dormir, para pensar, quem diria para se preocupar consigo mesmo.
A vida virou um equilíbrio frágil entre boletos, compromissos escolares, crises de birra e noites mal dormidas. Mas alí também estavam os melhores momentos da vida de Marco. Os desenhos feitos por Pedro, os abraços espontâneos, as risadas compartilhadas na hora do banho, seu filho se tornou a família que ele queria tanto que existisse, a única com quem ele poderia contar no futuro, Marco sabia melhor que ninguém disso.
Eram esses instantes que o mantinham em pé. O peso invisível do mundo não parece feito para pais como Marco, ele nunca esteve verdadeiramente preparado. Auxílios governamentais para pais solteiros são escassos e muitas vezes inacessíveis por burocracias. A creche pública, quando disponível, tem vagas insuficientes; o Brasil ainda enfrenta déficit de mais de 1 milhão de vagas para crianças de até 3 anos, segundo o relatório do Todos Pela Educação (2023). Licenças-paternidade prolongadas são quase inexistentes, limitando o tempo de adaptação e cuidado e inviabilizando em diversos momentos que pais possam dar a devida atenção e criação aos seus filhos.
Em muitas nações do globo, especialmente em países nórdicos, onde a cultura de criação do pai para com o filho é uma diáspora cultural histórica, como na Suécia, a licença-paternidade é de 90 dias e pode ser estendida. Além disso, em diversos outros continentes, também existem outros países onde há subsídios mensais diretos às famílias monoparentais, além de creches subsidiadas com horários estendidos, o que fortalece não apenas pais solteiros, como mães solteiras.
Políticas como essas mudam realidades. Marco, no entanto, vivia em um Brasil onde isso era um sonho distante. Contava com a solidariedade ocasional de vizinhos e a paciência de alguns empregadores, que, nem sempre, compreendiam a sobrecarga. Pouco a pouco Pedro crescia. Aos sete anos, começou a fazer perguntas sobre a mãe e Marco sempre foi honesto, ainda que cuidadoso. Não queria magoar a criança, mas sabia que a ausência da figura materna magoava. E era verdade. Paula seguia internada, com períodos de melhora, em que passava na casa da mãe, e recaídas. Mas era difícil, poucos sinais de recomposição eram apresentados por Paula, que já vinha em decrescente vertiginosa.
Aos poucos, o lar de Marco foi ganhando contornos mais leves. Aprendeu a preparar receitas simples, preparar a lancheira com tudo que era necessário e até costurar botões. Além de tudo ele era pai de primeira viagem; tudo era novidade. Pedro foi diagnosticado com TDAH aos oito anos, o que trouxe novos desafios: psicólogos, remédios e reuniões escolares. Marco enfrentou tudo com o cansaço acumulado, mas com a ternura de quem sabe o valor de cada pequeno progresso e de alguém que viu seu lar ser reconstituído, tijolo por tijolo.
Hoje, Pedro tem vinte e quatro anos, terminou a faculdade de administração de empresas e segue morando com seu pai. Paula já está totalmente limpa a mais de dez e finalmente “pode correr atrás”, dentro do possível, de recuperar o tempo perdido com seu filho. Marco continua trabalhando, agora com uma jornada mais realizável, o dinheiro, que por tempos era contado, e em algumas vezes vinha emprestado de amigos, agora parece sobrar. Não é muito, mas Marco já não deixa mais de comprar suas coisas para sustentar Pedro e a casa. O tempo para si, que hoje sobra e vale mais que ouro, Marco usufrui ao lado de Pedro, já que por tanto trabalho, ele mal foi capaz de acompanhar seu filho crescer, quiçá, de absorver esse crescimento.
Por uma outra íris, a história de Vitorino Fagundes retrata um homem que precisou reconstruir sua vida a partir do luto. Com um bebê nos braços e um país nas costas que pouco enxerga pais como ele. Fagundes, como é conhecido entre amigos, sempre levou uma vida simples e feliz ao lado de sua esposa, Teresa. Depois de sete anos casados e mais “não sei quantos” namorando, decidiram ter um filho para completar a família e finalmente realizar o sonho de Teca, como era conhecida. Durante a gestação, prepararam tudo com carinho: berço parcelado, paredes pintadas de azul claro, e o nome escolhido à dedo, para lembrar as memórias do avô materno — Caio.
Após meses de gestação, a realidade foi chocante, fúnebre, ao passo que, de alguma maneira, foi iluminada. Quando o bebê veio ao mundo, Teresa se foi. Complicações no parto ceifaram sua vida de forma repentina, deixando Vitorino viúvo e pai solo em um dos momentos mais frágeis da existência. Poucos momentos na vida conseguem ser tão ambíguos quanto o vivido por Vitorino. E ainda viria o desafio de criar sozinho.
Nos meses seguintes, Vitorino teve que equilibrar dois mundos em paralelo: o luto e a paternidade. O trabalho, antes motivo de orgulho, se tornou fonte de tensão. Não existia possibilidade de abrir a loja e cuidar de um recém-nascido ao mesmo tempo. Babás não cabiam no orçamento, que aliás mal existia no início da vida de caio. Tudo que Vitorino havia acumulado de dinheiro sumiu de sua frente como mágica.
A creche pública mais próxima? Lista de espera com mais de cem nomes. Não tinha para onde correr, com poucos recursos e sem direito a licença-paternidade estendida por ser autônomo, ele passou a trabalhar com o filho nos fundos da loja, de início, improvisando um berço entre caixas de papelão. Muitas vezes, precisava interromper o atendimento para trocar fraldas ou acalmar o choro de Caio.
Clientes compreensivos se tornaram raridade. A vida financeira desandou. Contas atrasadas, a loja mal vendia para se sustentar, quem diria lucro… Foram muitas noites em claro. E o mais difícil: a sensação de que ninguém o via. O caso de Vitorino revela um buraco nas políticas públicas brasileiras: a quase total ausência de suporte voltado a pais solo. A licença-paternidade é limitada (geralmente de cinco dias), sem previsão adequada para casos de viuvez. Creches públicas são escassas, especialmente em tempo integral e a maioria dos programas de assistência social, muitas vezes, tem o costume de escantear homens como cuidadores principais. Segundo dados do IBGE, o número de lares chefiados por homens com filhos pequenos, embora ainda menor que o de mulheres, tem crescido gradativamente nos últimos anos. Ainda assim, a estrutura de apoio segue problemática e , extremamente frágil, básica, tanto para pais, quanto para mães sozinhas(os), e em casos como o de Vitorino, praticamente inexistente.
O tempo passava e Caio crescia. Vitorino já não passava por dificuldades, os custos com o garoto diminuíram e o tempo para cuidar da loja foi gradativamente voltando ao normal. Quando Caio cresceu o suficiente, o pai lhe deu um presente que mudaria sua vida futuramente; montou na sala dos fundos do estoque, um espaço apertado com uma televisão de tubo e um SNES (videogame) e caio passava horas e horas desbravando o mundo dos games enquanto crescia no espaço de trabalho de seu pai. Muitos anos depois, esse amor de caio se tornaria sua profissão, desenvolver jogos para videogames. Vitorino chegou a buscar ajuda em unidades do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), mas enfrentou burocracias, falta de orientação e escassez de serviços voltados para homens em sua situação.
Vinte cinco anos depois da tragédia, Caio está prestes à ser pai e Fagundes não poderia se sentir mais honrado em ter, finalmente, um neto. A loja já não existe, mas rendeu um dinheiro razoável para que o pré-vovô possa se aposentar em paz. Vitorino ainda carrega a saudade de Teca, mas também a certeza de que está honrando o amor dela da melhor forma possível: tendo netos, com amor.
A história de Marco e Vitorino é a de milhares de pais pelo país: silenciosos, sobrecarregados, invisíveis. Homens que se reinventam para serem presentes e o sustento de suas casas ao mesmo tempo, que amam profundamente seus filhos e que, mesmo diante das adversidades, escolhem ficar, trazer todo e qualquer suporte que seja necessário para o desenvolvimento de uma criança.
A realidade de pais solteiros como estes evidencia a necessidade urgente de ações de incentivo aos pais e mães em situação monoparental, especialmente com a ampliação das licenças paternidades em casos desse cunho, com pelo menos 90 dias de afastamento garantido. Aumentar o número de vagas em creches públicas e criar turnos noturnos para trabalhadores em jornada estendida seriam que formatações sociais interessantes para gerar maior suporte a esses indivíduos, bem como criar projetos estatais de auxílio financeiro mensal específico para famílias monoparentais de baixa renda, semelhante ao modelo do “Child Benefit”, presente no Reino Unido.
Para além de mudanças palpáveis, também é importante que quebre-se certas hegemonias. Campanhas públicas que normalizam e incentivam a corresponsabilidade masculina no cuidado com os filhos, combatendo estigmas sociais são fundamentais para que haja uma mudança de mentalidade efetiva e mais pais formem-se aptos para o cuidado de seus filhos. A construção de uma sociedade mais justa passa pelo reconhecimento e apoio aos que, como Marco, Vitorino e muitos outros, fazem o possível e o impossível todos os dias; entre silêncios, lágrimas e, sobretudo, amor.