Em SP, reintegrações de posse seguem ocorrendo em meio à pandemia mesmo com pedidos contrários do MP e da ONU

Segundo dados do LabCidade, pelo menos 1300 famílias foram impactadas por pedidos judiciais de despejos e reintegrações de posse na Grande São Paulo entre abril e junho de 2020
por
Guilherme Dias, Henrique Sales Barros, Inara Novaes, Isabela Câmara
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17/09/2020

No início de julho, a ONU (Organização das Nações Unidas), por meio de seu relator especial para o direito à moradia, Balakrishnan Rajagopal, pediu que o Brasil suspendesse todas as ações de despejo e reintegração de posse durante a pandemia do novo coronavírus.

“Despejar as pessoas de suas casas nessa situação, independentemente do status legal de sua moradia, é uma violação de seus direitos humanos”, disse Rajagopal por meio de nota.

O pedido do relator veio poucos dias depois de nove entidades ligadas ao direito à moradia, entre elas o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), enviarem uma representação contra o governo brasileiro à ONU sobre o assunto.

“O Ministério da Saúde brasileiro pediu às pessoas que fiquem em casa se tiverem sintomas, que lavem bem as mãos e mantenham um distanciamento físico para evitar o contágio”, pontuou Rajagopal.

“Ao mesmo tempo, centenas de famílias foram despejadas no estado de São Paulo sem qualquer acomodação alternativa, impossibilitando o cumprimento das recomendações oficiais e tornando-as em alto risco de contágio”, finalizou.

Segundo dados do LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade), da USP (Universidade São Paulo), pelo menos 1300 famílias foram impactadas por pedidos judiciais de despejos e reintegrações de posse na Grande São Paulo entre abril e junho de 2020.

Milena, 25, e seus dois filhos - Enzo, 4, e Heitor, 1, - formam uma dessas famílias afetadas por despejos em meio à pandemia em São Paulo. A atendente estava em uma ocupação na cidade de Diadema, no ABC Paulista, até o dia 18 de agosto, quando a área acabou passando por um processo de reintegração de posse.

“Tinham pessoas [na ocupação] que não tinham para onde ir, com criança pequena. Os policiais [militares] não queriam saber de nada, só queriam derrubar os barracos. Tudo uns comédias”, diz Milena.

O cumprimento da ordem judicial ganhou os noticiários após acabar em incêndio. Segundo Milena, foram os próprios moradores que atearam fogo na área.

“Eles (moradores) falaram que entre deixar os policiais derrubarem os barracos, eles preferiam tacar fogo, e o meu foi um deles. Eu falo barraco, mas era minha casa, entendeu? Sinto maior orgulho dessa palavra. Pena que acabou”, conta.

Milena afirma que não conseguiu salvar nada do que possuía em sua casa na ocupação, que tinha apenas um colchão e uma mesa. Hoje, a atendente, que está para ser demitida da empresa em que trabalha, vive em uma casa de aluguel com os filhos também em Diadema.

Dânia Lima Oliveira, 55, também vivenciou um despejo em meio à pandemia, mas no papel de líder comunitária em uma ocupação reintegrada no dia 16 de junho em Guaianases, na zona leste de São Paulo.

“Eu perguntei para o policial [que estava na reintegração] qual alternativa do pessoal, porque na verdade o pessoal não tinha para onde ir. Ali, não se encontrava nenhum funcionário da área da saúde, não tinha nenhum assistente social, não tinha nada de amparo para o povo, então aquilo estava sendo um crime, realmente”, diz.

“Eu perguntei: ‘Esse povo vai para onde? Porque não tem alternativa para esse povo?’. Resposta do policial: ‘Eles voltam de onde eles vieram’. Foi essa a resposta. Achei uma frieza muito grande”, afirma.

Segundo Dânia, muitas pessoas que estavam na ocupação se deslocaram para uma área nas margens de um córrego conhecido como Ipê, também na zona leste da capital.

“Uma parte desse povo voltou para decadência, que é dentro desse córrego do Ipê, convivendo com a imundice. Eu sempre vou lá, inclusive a gente ajuda com cesta básica, ajuda com roupa, com itens de higiene. É pouco, né? Mas já é grande coisa para aqueles que realmente necessitam”, diz.

“As autoridades deveriam se preocupar mais com isso, porque ali tem muitas crianças, muitas pessoas que têm deficiência, têm pessoas idosas, enfim, têm seres humanos ali, então eles deveriam se preocupar com o córrego. Se de repente aterrassem tudo ali, deixassem tudo em ordem, para o pessoal ter espaço para construir suas casinhas...”, acrescenta.

No fim de julho, o MP-SP (Ministério Público de São Paulo) recomendou à Prefeitura de São Paulo a suspensão de qualquer ação de despejo em meio à pandemia. Em casos pontuais, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo conseguiu suspender mandados de reintegração de posse na Justiça.

Para o geógrafo Gustavo de Oliveira, professor da PUC-SP e gerente da Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados), o direito à propriedade não deveria estar acima do direito à moradia nas decisões de reintegração de posse - ainda mais em meio a uma crise sanitária.

“O papel do judiciário deveria ser mais proativo na defesa dos interesses da cidadania, e não da propriedade", diz.

“Qualquer despejo, qualquer reintegração de posse, não deveria acontecer em hipótese nenhuma sem o direito de moradia garantido, ou seja, só poderia ter reintegração de posse ou despejo comprovado de famílias sem renda se o Estado oferecesse algum tipo de alternativa para essas pessoas”, acrescenta.

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