Hoje faz exatamente dois meses que estou confinada dentro de casa. 60 dias que passaram como se fossem apenas um único dia com duração longa, afinal, o que antes eu chamava de rotina, agora se parece com um disco riscado. Durante esse período, eu e a parcela da humanidade que se confinou em casa tivemos que reaprender a viver – o que não foi nada agradável. A minha relação com a quarentena nasceu quase que de um processo de luto e suas fases; passei pela negação, raiva, tristeza, angústia e finalmente... aceitação.
Desde a primeira semana do isolamento social, as pessoas, sejam elas jornalistas, colunistas, blogueiras ou parentes, têm falado sobre métodos e dicas para lidar com esse tempo todo em casa da melhor maneira possível. A princípio, confesso que achei interessante, mas com o passar dos dias os dizeres e conselhos passaram a invadir meu cérebro como leis que eu deveria seguir, caso contrário, seria reprovada – por quem? Eu também não sei.
“Aproveite o tempo para ser produtiva. Leia livros, aprenda receitas novas, pratique yoga e meditação, converse com seus amigos por facetime e de praxe aproveite para se conhecer melhor. Tome o sol da manhã, faz bem para a pele. Durma 8 horas por dia. Faça cursos online e aprenda a cortar seu próprio cabelo.” Uau. Foi implantada no senso comum a certeza de que, na quarentena, cada dia passou a ter 48 horas, e desenvolvemos superpoderes de nos multiplicarmos para fazer 3 coisas ao mesmo tempo. Ok. Todos esses hábitos realmente são benéficos para o bem estar físico e mental. Mas e se eu não conseguir?
A pandemia e o caos político, econômico e social instalado do lado de fora da minha janela trazem inseguranças e medos constantes que se renovam a cada dia. Mais tempo em casa também significa mais tempo pra pensar – e convenhamos, pensar demais é um formoso convite para pensamentos negativos e angustiantes nos visitarem.
Portanto, além de ter que cumprir com as minhas obrigações usuais do dia a dia como se nada estivesse acontecendo, eu ainda devo adicionar à minha lista de afazeres “não me deixar levar por preocupações sobre a pandemia” e “aproveitar meu tempo livre para ser produtiva”. Mas afinal, o que é ser produtiva?
Se em tempos em que o mundo está de cabeça para baixo e tudo está se transformando – as aulas chegam até os alunos pelo computador, a plateia vai aos shows pela televisão e o psicólogo aconselha através de uma ligação – não deveríamos também adaptar o significado de ser produtivo?
Ligar o computador crucialmente às 7h30 da manhã e só desligar às 20h – se o chefe não pedir mais alguma coisinha – não significa que fui produtiva o dia todo e realizei grandes feitos. O rendimento em casa não é o mesmo, decorrente de inúmeros fatores. A concentração em um ambiente em que estamos habituados a descansar é quase impossível de alcançar, o que nos deixa muito mais cansados para realizar coisas que antes resolvíamos sem gasto excessivo de energia. Distrações. É a mãe em uma reunião na sala, o pai com a TV ligada, gato miando, obra do vizinho acontecendo. Para quem estuda e trabalha à mercê da criação, esse é um cenário perturbador – e real.
Então, misturando um ambiente instável com uma dose de cobranças pessoais e externas e uma pitada de surtos completamente normais pela circunstância do país – temos uma necessidade imediata de nos desprendermos do conceito da produtividade. As redes sociais, como um dos mecanismos de distração mais usados pelas pessoas que estão confinadas, têm um poder avassalador de manipular nossos sentimentos. Pode nos aproximar de pessoas queridas, nos fazer gargalhar com vídeos engraçados e implantar reflexões importantes com artigos e reportagens? Sim, claro. Mas sem a dosagem e consciência de quem a acessa, pode causar o efeito reverso da distração e entretenimento e fazer com que nós, tão vulneráveis em tempos de apocalipse, comecemos a nos cobrar por coisas que no fundo nem sabemos se queremos.
Por exemplo, um dia desses me peguei fazendo polichinelos e abdominais, afinal, me prometeram endorfina e sensação de bem estar. Ah, e tem que fazer também pra não engordar, viu? Nada de deslizar na dieta na quarentena. O mundo está em colapso mas a sua estética vem em primeiro lugar, mesmo que passe por cima da sua saúde mental. Durante a minha sessão de exercícios, percebi que eu estava cansada demais pra fazer aquilo, naquele momento. Havia trabalhado e estudado o dia inteiro, além de passar um tempão ajudando uma amiga que estava com problemas. Eu só precisava tomar um banho e dormir, mas me forcei a fazer exercícios para poder fazer um check na minha lista de produtividade, que também continha “meditar” e “reler Mulheres que correm com os lobos”. Naquele dia, o cansaço plantou uma frase na minha cabeça que tem sido muito útil para várias situações do cotidiano: “e se eu não quiser?”.
Tudo bem que muitas pessoas estão tocando suas vidas normalmente e praticando mil atividades, mas e se eu não quiser? E se eu não quiser fazer um curso extra de línguas, e sim passar um tempo deitada no chão frio da sala olhando pro teto? Talvez essa seja a minha meditação e descanso, ao mesmo tempo. E sei que muita gente se sente como eu – forçada a ser produtiva, mesmo sem saber o que isso significa. Criar uma rede de apoio nessa fase de solidão é sim muito importante, assim como trocar experiências e dar dicas de macetes que funcionam pra você. Mas nada além disso. Mais do que querer impor uma ditadura do “sinta-se bem o tempo todo na quarentena”, gostaria que a sociedade acordasse motivada a cultuar o “respeite seu tempo e sua saúde mental, e tá tudo bem”. Porque tá tudo bem mesmo.
Se não conseguir compor 15 músicas como fazia antes, se quiser ouvir um único álbum durante um mês, se quiser ficar em silêncio, se quiser falar o tempo todo. Somos seres instáveis e únicos, e de quarentena, estamos enfrentando desafios diários e particulares. Dores e celebrações que só cabem a nós decifrar.
Talvez essa fase demore meses pra se encerrar, ou menos. Ou mais. O importante é que a cada dia eu entendo mais que ser produtiva é um conceito que se muta a cada manhã. Em um dia, fui produtiva porque escrevi 3 matérias e fiz 2 entrevistas, e ainda tive tempo pra fazer um bolo pro aniversário da minha mãe. Noutro, me senti produtiva por ter conseguido, dentro dos meus limites, arrumar a cama e fazer um bom café doce e forte. E nada mais.
Como eu disse, a minha relação com a quarentena foi um processo de luto, e ter chegado na aceitação não me proíbe de abraçar a angústia de vez em quando. Mas sim, de me fazer entender que assim como eu, todo mundo que passou por esse processo vai dar –e já está dando – o melhor de si. Dia a dia, com alegrias pequenas e grandes, conversas fiadas, um pôr do sol de tirar o fôlego e alguns dias chuvosos. Viver um dia de cada vez, mesmo que todos pareçam ser o mesmo. Ter a sabedoria e maturidade pra se deparar com inúmeras opções e se perguntar “e se eu não quiser?”, e no fim do dia, ter feito o que estava ao nosso alcance, com brechas de respiro que nos fizeram lembrar que nada do que estamos produzindo ou deixando de produzir neste momento nos definirá como pessoa pós-apocalipse. Estamos reinventando a vida, tudo é um teste. E que no fim, possamos encontrar a nossa fórmula secreta pra viver em paz com o nosso “eu”. Aquele que teve a coragem e ousadia de dizer: e se eu não quiser?