"O crime em São Paulo acabou virando modelo de negócio, a partir de um momento ele passa a comprar posto, adega, ônibus e vários outros negócios. De repente o traficante não é mais o traficante e sim o empresário, que dá dinheiro para a igreja e é evangélico, então você acaba perdendo o rastro desse dinheiro sujo".
A análise é do jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e vencedor do prêmio Jabuti, Bruno Paes Manso. O autor de "República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro" e "A Guerra: A ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil" voltou ao seu lugar de formação para participar de uma entrevista coletiva ao Contraponto Digital da PUC-SP.
O jornalista respondeu perguntas variadas desde como foi o processo de escrever o livro: métodos jornalísticos que usou, quais estratégias de checagem de fatos e até mesmo decidir o que entraria ou não nas 304 páginas. Ele contou sobre a forma como "República das Milícias" se tornou um sucesso que até virou podcast e sobre suas experiências enquanto produzia a obra.
As páginas do livro narram a história do nascimento das milícias no Brasil desde o começo: dos esquadrões da morte formados nos anos 1960; da ditadura militar; do domínio do tráfico nas décadas de 1980 e 1990; das máfias de caça-níquel e da ascensão de milicianos e seus negócios.
Surgida numa pequena comunidade rural na Zona Oeste do Rio, as milícias foram ganhando poder político e econômico a partir dos anos 1990, auge da violência e do poder do tráfico, em conflito com a polícia e entre diferentes facções. Bruno responde uma dúvida silenciada por anos pela polícia: viver sob o tráfico ou a milícia?
Passando por um dos mais emblemáticos crimes da história brasileira, o assassinato da vereadora Marielle Franco, e revelando relações com o poder, principalmente com a família do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que se tornou personagem do livro “A república das milícias”.
Para apurar uma história tão delicada, Bruno entrevista milicianos e ex-milicianos. Ele descreveu no livro, uma entrevista com o personagem chamado de Pescador, em que a entrevista aconteceu em um local cheio de aves para evitar gravações. Ele explicou que para conseguir as respostas que deseja, se coloca no lugar do entrevistado e não se permite julgar a vivência de cada um.
O autor não deixou de fora da coletiva novas informações sobre seu novo livro. "Fé e fuzil" será lançado no segundo semestre deste ano, e vai tratar das Igrejas evangélicas e dos crimes que justificados pela fé.
Confira os destaques da entrevista:
Contraponto Digital: A milícia brasileira é uma das mais organizadas do mundo, como o colonialismo influenciou na expansão e instalação desses grupos?
Bruno: Todas as questões que eu escrevo, se for parar para pensar na violência, estão muito ligadas ao processo de urbanização do Brasil, uma história que a gente está escrevendo até hoje. Estamos falando de um país onde 70% era rural e a maioria das pessoas morava no campo, historias de escravidão, letifundios, coroneis e ao mesmo tempo trabalhando na terra e a sua relação com a igreja, principalmente o catolicismo. Essa cultura de alguma forma funcionava, apesar de ser um país violento essa ordem acabou sendo estabelecida.
Em 1950, os veículos de comunicação em massa criam nas pessoas uma ideia de que aquele mundo estagnado, hierárquico e sem possibilidades na verdade não era real e que essa possibilidade existia sim. A Partir disso uma nova realidade surgiu e as pessoas passaram a migrar para a cidades e o Brasil passa a ser majoritariamente urbano e esses dois mundos passam a coexistir, com muito estranhamento e preconceitos.
As milícias são o auge do bolsonarismo, houve alguma mudança no modus operandi das organizações com o início do governo Lula?
No caso da vitória do Lula, em primeiro lugar eu acho que nós corríamos um certo risco no segundo mandato do Bolsonaro de todos os avanços no sentido de um governo autoritário e esse conflito e convicção que eles estão em defesa do bem. A gente está passando por uma transição muito grande no mundo em que vivemos.
O Lula surge como uma possibilidade de voltar a discutir de uma forma mais racional e menos apaixonada de acabar com a guerra, de propor uma pacificação. Só que é muito difícil você propor racionalidade em um mundo que está pegando fogo, então apesar de ele representar isso, ele encontra dificuldade em fazer acordos com os representantes dessas organizações.
Você pode comentar mais sobre essa conexão de masculinidade x violência e comparar com outros livros que já escreveu? Por exemplo, o livro sobre o PCC.
Você tem essa ideia que faz parte da produção do estado moderno, onde esse estado se forma a partir do momento em que ele consegue exercer o monopólio legítimo da força. Isso significa que só o estado pode usar da violência quando as pessoas desrespeitam a lei. Essa ideia de você ver a violência como uma forma pedagógica faz parte da produção da civilização.
Ao passar do tempo passa a ser discutido que o poder quando ele precisa usar a violência é porque ele deixa de ter o poder. Se você precisa usar disso o tempo todo para que os outros obedeçam e essa é uma das questões da violência brasileira é que não existe um pacto coletivo sobre esses termos. Existe uma mega injustiça e desigualdade, você não é capaz de produzir esse tipo de liderança e obediência, você usa a violência porque o poder é frágil.
O bolsonarismo chegou em São Paulo na figura de Tarcísio de Freitas, novo governador do estado. Você acha que o PCC corre o risco de perder o monopólio do crime para as milícias com a chegada dele? Uma vez que o Governador Tarcísio elogiou muito o modelo de segurança do Rio de Janeiro.
A questão com São Paulo, ele foi tomado pelo PCC, é que o estado foi tomado de uma outra forma, existe um outro tipo de gestão, um outro tipo de negócio. O crime em São Paulo acabou virando modelo de negócio, a partir de um momento ele passa a comprar posto, adega, ônibus e vários outros negócios. De repente o traficante não é mais o traficante e sim o empresário, que dá dinheiro para a igreja e é evangélico, então você acaba perdendo o rastro desse dinheiro sujo.
Você cria uma nova forma de marra, o traficante passa a fazer parte de ONGS e negócios internacionais formando uma nova cena empresarial, ao estado hoje só cabe permitir que esses estados continuem acontecendo. O PCC virou esse grande governo desse mundo, o modelo de milícia do Rio de Janeiro é outro.
A mídia, sobretudo os programas policiais, como Brasil Urgente e Cidade Alerta, ajudaram a consolidar o discurso das milícias dentro da sociedade, especialmente nas comunidades? Já que esses programas exaltam a força policial em detrimento de alguém que cometeu um crime?
Eu acho que sim, esses programas acabam acirrando essa ideia de guerra ao crime mas tem uma camada de diferença nas redes sociais, porque apesar dos programas falarem isso o diálogo não deixava de acontecer. O problema nas redes é que elas passam a isolar esses mundos, se transformando em uma grande guerra de ideais. Nos programas as pessoas que dão as caras ao vivo, podem ser responsabilizadas aqui fora. Com o tempo eu acabei me tornado menos crítico sobre isso.
Qual foi o raciocínio feito na realização do livro? Primeiro vieram os dados, pesquisa histórica e entrevistas, ou tudo se misturou? Você pensou em desistir de escrever o livro em algum momento quando a apuração estava difícil?
A estrutura do livro é algo que eu tenho repetido nos três livros, é algo que acabou virando um modelo meu, eu parto da notícia quente, então a partir desse fato quente, procuro explicar como isso aconteceu, eu volto na história. Meu interesse vem dos discursos e das ideias que passam a se espalhar pelos outros. A construção geralmente inicia com a descrição desse fato quente e em algum momento do livro eu volto para construir o arco narrativo para os leitores.
Toda investigação começa por perguntas que você faz e o que você busca, a investigação começa por perguntas que talvez depois você perceba que as pessoas também não tem resposta. Eu tive muita sorte escrevendo A república das milícias, deu tudo muito certo em encontrar os personagens. Assim que eu entrevistei o Lobo, já sabia que ia ser o personagem que iria abrir o livro e eu faria a ligação ao Bolsonaro, sem precisar forçar a barra para falar sobre.
Como traçar o limite entre a curiosidade e o necessário para conduzir a entrevista, para conseguir as informações que precisa?
Eu vejo o jornalismo como terapia, deixo meus entrevistados falarem o que sentirem a vontade e só falo com eles se for apresentado por alguém que eles confiem. O importante é eles sentirem que podem falar comigo, muitas vezes eles querem ter suas histórias contadas.
É fundamental ter suas perguntas muito claras, saber qual seu produto final e o que você precisa. O que vale são as histórias que o entrevistado vai te contar, o que ele se sentir confortável para compartilhar com você.