A cultura do fã exige cuidados com os efeitos psicológicos e sociais

Uma paixão que pode ajudar na construção de conexões emocionais e auxiliar no autoconhecimento, mas que deve vir acompanhada de equilíbrio e autorregulação
por
Ana Julia Bertolaccini
|
08/05/2025

Por Ana Julia Bertolaccini

A vida de Victoria Siqueira, de 39 anos, foi moldada e insipirada pela cultura do fã, através do mundo digital, que  permitiu com que suas paixões se transformassem em uma carreira. Vic, como é conhecida pelos amigos, trabalha há 17 anos como social media, e descobriu sua paixão pela comunicação através dos chamados “fandoms” (comunidade de fãs). Aos 11, ela presidiu  o “Wanna be”, fã-clube do grupo britânico Spice Girls e aos 16, viveu a época dos blogs, criando o seu próprio posteriormente, o qual foi alimentado durante anos.

Com a evolução das redes digitais e da Internet, Vic passou a desenvolver habilidades em design e programação para personalizar as postagens que compartilhava através do blog. No início, ela chegou a fazer parte de iniciativas que hoje se comparam às atividades dos influenciadores digitais, mas que na época ainda não levavam esse nome. Como o futuro desse tipo de carreira ainda era muito incerto, Vic deciciu que levaria todo esse aprendizado para o meio acadêmico, através da comunicação. 

Foto do jornal em que Victoria participou
Arquivo Pessoal: foto de um jornal para o qual Victória deu entrevista quando criança 

Victoria Siqueira é formada em publicidade e trabalha em uma empresa que cuida de duas marcas de roupas. Dos vários desdobramentos que um hobby poderia ter tido, Vic direcionou-o para o meio acadêmico e para o marketing digital no mercado de trabalho, desenvolvendo sua carreira através das mídias, do branding (identidade visual, valores missão e comunicação de uma marca), e cuidando também do relacionamento com influenciadores, transitando entre funções que algum dia já teve durante os tempos do blog

Aos 28 anos, a jornada do fã é algo novo para a jornalista e criadora de conteúdo Yakine Reis Paixão. Ela voltou a ter inspiração para criar seus próprios conteúdos no Instagram e no TikTok quando passou a conhecer mais sobre grupos de kpop e outros estilos musicais. Depois de formada e com o início da vida adulta, Yakine havia perdido um pouco dessa motivação, o que mudou completamente depois que ela passou a se conectar com si mesma em espaços virtuais coletivos que ela nem se quer lembrava que existiam.

Yaks, como gosta de ser chamada nas redes, acredita que ser fã é poder enxergar em outras pessoas um motivo ou uma inspiração para anseios pessoais. Para ela, essa cultura também traz o senso de comunidade muito forte, ao proporcionar uma troca de pensamentos e sentimentos entre as pessoas. Um interesse que é coletivo, e que ao mesmo tempo, é compreendido por cada um à sua própria maneira, talvez não possa ser descrito em poucas regras ou em uma curta definição.

Juliana Capel, psicóloga e especialista em psicologia positiva pela PUC-RS, explica que um dos fatores desse estilo de vida é a construção da identidade pessoal. Muitas pessoas descobrem talentos e paixões ao admirar um artista, podendo despertar o interesse por música, dança, fotografia, escrita, design, edição de vídeo, produção de conteúdo e até mesmo por áreas acadêmicas, como é o caso de Vic. 

Essa paixão pode ser algo benéfico do ponto de vista psicológico, uma vez que a relação emocional com um artista proporciona sentimentos de alegria, entusiasmo e conexão, podendo auxiliar no estímulo da criatividade e até fortalecer a autoestima. Além disso, essa atividade também pode ativar memórias afetivas, fortalecer a empatia e até contribuir para o autoconhecimento. O segredo para uma boa experiência, no entanto, é o equilíbrio.

A ridicularização do entretenimento feminino

Aline Sodré, de 44 anos, foi conhecida por muitos anos como “a fã dos Beatles” na escola, na faculdade e no trabalho. Desde 2010, ela viaja e assiste a maior quantidade de shows possível de seu principal ídolo, Paul McCartney. Ao todo, ela já viu 35 shows do artista no Brasil, na América do Sul e nos Estados Unidos. Aline tatuou o autógrafo dele no braço e também tem tatuado trechos de músicas de Paul e dos Beatles no corpo. 

Depois de todos esses anos inserida nesse ambiente, ela percebeu que há um preconceito direcionado principalmente aos ídolos adolescentes, como cantores do gênero pop: Justin Bieber, Taylor Swift e outras boybands. Apesar disso, ela não se incomoda com essa visão distorcida em relação aos gostos predominantemente femininos.

Foto de Aline em um dos shows de seu ídolo
Reprodução/redes sociais: Aline Sodré em um show do seu ídolo, Paul McCartney  

A criadora de conteúdo Yakine sente que tudo que é feminino nunca é suficiente para a sociedade. Do trabalho ao lazer, não importa o quão saudável seja um costume ou um hobby, ele sempre será menosprezado, diminuído ou dado como inútil e infantil para a grande mídia e para a opinião pública. O mesmo, porém, não acontece na mesma intensidade com gostos de grupos majoritariamente masculinos.

Quando se fala em futebol, não é difícil de ouvir por aí grupos de homens adultos discutindo quem está à frente no campeonato e quais jogadores têm feito um bom trabalho. Para quem convive diariamente com torcedores, é notável a mudança de humor e de temperamento dessas pessoas, o que muitas vezes tem relação direta com jogos ganhos ou perdidos do time do coração. 

Mesmo ao abordar o futebol como uma forma de entretenimento, ignorando possíveis atividades que se relacionem diretamente com o esporte e focando completamente em discussões sobre ídolos e equipes, os homens raramente são tratados como crianças ou julgados por falar sobre esse assunto em encontros de família e até mesmo em ambientes corporativos. 

Existe um machismo estrutural que tende a desvalorizar ou ridicularizar tudo que um grupo de mulheres gosta intensamente, enquanto hobbies masculinos são vistos como legítimos e costumam ser respeitados. Esse tipo de preconceito acontece em culturas como a do K-pop, doramas e até com o consumo de literatura romântica Todavia, qualquer tipo de arte ou entretenimento deve ser encarada como algo legítimo, independentemente de quem a consome. A psicóloga Juliana Capel reforça que gostos pessoais não precisam de validação externa para serem considerados válidos.

A Idolatria 

Uma colega de Aline, que já tinha na época mais de 40 anos na época, era obcecada por uma dupla sertaneja famosa e os seguia pelo Brasil todo. Mandava presentes caros e ficava na porta do prédio deles esperando. Era um amor platônico tão grande que ela tinha certeza que ia se casar com um dos moços da dupla e essa obsessão vinha acompanhada de um sofrimento intenso. 

Aline Sodré tem hoje um olhar mais crítico e analítico sobre o fã. Ela continua a fazer parte dessa cultura, mas como ela mesma destaca, é uma paixão alimentada de uma forma menos fervorosa e mais responsável do que era na adolescência, por exemplo, quando tudo é mais intenso. Essa transição, no entanto, não ocorre para todos.

Em alguns episódios, esse interesse passa a dominar todos os aspectos da vida da pessoa, se transformando em um comportamento obsessivo, onde a pessoa deposita sua identidade e felicidade exclusivamente no ídolo, perdendo o equilíbrio emocional. Esse tipo de envolvimento pode acontecer quando há um vazio emocional, baixa autoestima ou dificuldades em lidar com a própria realidade. Diante disso, o trabalho, os estudos e as relações pessoais passam a ser negligenciadas. 

Há um estigma de que “ser fã” é sempre algo doentio, relacionado a uma idolatria cega, o que não procede em grande parte das circunstâncias. Ainda assim, é fato que um transtorno obsessivo possa vir a se desenvolver em casos extremos. O contraponto de uma vida saudável, com gostos e paixões pessoais, é o desequilíbrio. Nesse contexto, algumas pessoas podem chegar a gastar dinheiro de forma compulsiva, comprometendo a própria estabilidade financeira.

Como evitar um possível desequilíbrio? 

Conhecendo a si própria e tendo vivido diversas experiências em razão dessa cultura, Aline se deu conta de que ela não quer ultrapassar as barreiras que existem entre um fã e o seu ídolo a ponto de desenvolver uma amizade e uma proximidade maior com os artistas que admira. Ela conta que quando começou a perceber que os cantores pelos quais ela era fascinada se tratavam de pessoas reais, com dias bons e ruins, ela entendeu que deveria recuar e estabelecer limites que permitissem com que ela os admirasse apenas como artistas, não interferindo na vida pessoal deles. 

Hoje, aos 44 anos, ela continua indo a shows e viajando para ver seus artistas e bandas preferidos. Em sua percepção do futuro, Aline acredita que sempre terá essa necessidade de tietagem e pretende continuar a investir seu dinheiro com esse tipo de entretenimento. No atual momento de sua vida e daqui pra frente, porém, Aline não tem mais a intenção de acampar em portas de estádios, ficar nos mesmos hotéis que esses artistas, ou ser adepta de atividades que interfiram profundamente na sua rotina e no seu estilo de vida. 

É importante entender essa linha tênue entre adoração absoluta quase religiosa e admiração profunda. Para isso, os principais tipos de conduta que devem ser levados em conta são o autoconhecimento e a autorregulação. É preciso observar se o envolvimento com o ídolo está vindo de um lugar saudável ou se está sendo usado para evitar lidar com desafios da própria vida.

Ter outros interesses e atividades além da participação em grupos de fãs é imprescindível. O esporte, os livros, o cinema e outras ocupações culturais ou de lazer são boas alternativas. Manter conexões reais com amigos e familiares também é essencial. Definir limites de tempo e dinheiro gastos com esse tipo de entretenimento são parte da estratégia de autocontrole, o que evita a desestabilidade financeira.

Outro fator importante para o fã é o consumo consciente de conteúdo. Sentir um sofrimento intenso ao não conseguir acompanhar tudo o que o artista faz não é um bom sinal. Ter consciência de que os ídolos são seres humanos e de que a admiração não deve se tornar uma idealização irreal é o segredo de uma paixão equilibrada, que pode ser extremamente positiva para o bem-estar psicológico e social, sem impedir a vivência de outras experiências. 
 

Tags: