Comunicação entre pessoas com deficiências opostas é desafio cotidiano

As barreiras no diálogo entre surdos e cegos e as ferramentas para superar os obstáculos.
por
Nícolas Damazio
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18/11/2024

Por Nicolas Damazio

 

O simples fato de sair de casa, para uma pessoa com deficiência é, por essência, uma aventura em potencial. Como um salto no escuro. Isso porque, da porta para dentro é possível se construir uma dinâmica na qual as barreiras parece não existir. Por meio de adaptações, adequações e personalizações de ambientes, mobílias e objetos, criam-se novas formas de fazer de tudo: de higiene pessoal à faxina, de escolher roupas ou consumir conteúdos audiovisuais. Da porta para fora, entretanto, a realidade é outra. O mundo real, aquele com calçadas quebradas e quase nunca com piso tátil, aquele no qual quase ninguém fala em libras, aquele no qual todo e qualquer com algum tipo de necessidade especial que lute. E sobreviva na selva das ruas de uma metrópole como São Paulo. Mas os obstáculos podem estar no campo da linguagem. Da comunicação, E entre semelhantes. No encontro de perdas de sentidos que, ao mesmo tempo, são opostos e complementares. 

O diálogo entre um cego e um surdo parece algo impossível. Uma espécie de muro comunicacional se ergue, fazendo com que seja necessário buscar, em tempo real, ferramentas para atravessá-lo. No entanto, quando comunicar é preciso e adaptar é igual a existir, ainda que sem saber, os envolvidos tratam de fazer acontecer. 


A barreira visual

Farmácias são ambientes um bocado hostis para uma pessoa com baixa visão. As luzes brancas, frias e fortes incomodam e atordoam a vista turva. A luminosidade estoura na névoa que não sai dos olhos. Após distinguir o que é caixa e o que é balcão de atendimento, o desafio seguinte é acertar qual o guichê que chama pela próxima vez. Dali em diante, sem intercorrências. Apenas a hora de assinar, à mão, a via que fica no estabelecimento. Mas aí não há mistério. É pedir para que o atendente posicione a ponta da caneta na linha e tentar manter a escrita em linha reta. Próximo passo: caixa. 

No momento do pagamento, mais uma fila. Ao entender que chegou sua vez, o cliente com deficiência visual entrega sua cesta para o funcionário que tem deficiência auditiva e, ao não ouvir sua resposta ao ‘boa noite’, logo se da conta de  que o rapaz era surdo. Num primeiro momento, o cliente se fia no fato de sua deficiência ser invisível e finge costume. O atendente, então, escaneia, um a um os códigos de barra dos produtos. O cliente acompanhava a quantidade de itens adicionados à sua compra pelo som característico da máquina e, ao fechar o total, percebe que o funcionário apontava para o monitor no intuito de mostrar o valor para que o comprador conferisse se estava tudo certo.,.

Sem saber libras - ainda que, se soubesse, só serviria para que pudesse falar com as mãos e não entender os sinais das mãos do interlocutor - a solução instintiva do cliente foi gesticular. Apontar para os próprios olhos e seguindo com um sinal de negativa, chacoalhando o dedo indicador em riste.

O caixa pareceu entender e sacou um pequeno pedaço de papel e uma caneta e escreveu o valor. O cliente hesitou. Poderia pegar o celular, abrir a câmera, fotografar o pedaço de papel, abrir a imagem, ampliá-la com um gesto de pinça  invertido para, aí sim, tentar interpretar a caligrafia. Um ato banal, que para àqueles sem nenhum tipo de deficiência caberia no conceito de 'bater o olho' demanda inúmeras etapas neste caso.

A escolha foi pelo celular, mas por um caminho que dividia com o atendente a missão de conectar os pontos de quem quer dizer com quem quer saber o que. Abriu o aplicativo de notas no dispositivo e entregou ao caixa, que prontamente digitou R$ 297,00. Para ler o que tinha sido escrito, o cliente deu dois toques na tela utilizando três dedos, gesto usado para maximizar o conteúdo e... voilà. Enfim, mensagem enviada, mensagem recebida.Comunicação estabelecida com sucesso.Satisfeito com o progresso, o cliente respondeu com um sinal de 'joia' e escreveu: 'passa no crédito, por favor' seguido de um 'esse valor parcela?' e tornou a entregar o aparelho nas mãos do funcionário da drogaria. Ele então, digitou que sim, em até três vezes, forma de pagamento escolhida pelo cliente. A partir deste momento, não tinha mais erro. Era aproximar o cartão da maquininha, aguardar a impressão do cupom fiscal, agradecer e ir embora. 


No mar aberto que é o mundo exterior de quem tem alguma condição que escapa ao status quo no qual a sociedade - leia-se pessoas e cidades - se formou e se alicerça transpor barreiras é um exercício constante. Uma (quase) eterna prova de resistência. Se enfrentam obstáculos físicos, como o risco à própria integridade, e também os de interação. Se é no diálogo que se baseia a convivência, construir pontes é condição intrínseca para se viver no dia a dia.

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