Irmãos Lumière, David Griffith e Georges Méliès, todos cineastas homens, são alguns dos nomes que chegam até o nosso conhecimento, ainda crianças, quando falamos de clássicos do cinema nas aulas de história ou arte. Por volta de 1896, a parisiense Alice Guy Blaché dirigiu o seu primeiro filme, chamado “A Fada do Repolho”, considerada a primeira obra cinematográfica com a história em forma de narrativa no mundo. Além disso, Alice trabalhou como chefe de produção do estúdio da Gaumont (importante produtora de cinema) por 10 anos e esteve à frente de mais de mil filmes ao longo de sua carreira. Mesmo assim, o nome de Blaché não vem à mente quando falamos sobre os primórdios da sétima arte. Essa falta de visibilidade já está intrínseca na nossa sociedade.
A comunicação audiovisual é a representação da realidade em material e por conta de seu caráter ilustrativo, é responsável por atrair milhares de pessoas diariamente para os seus espetáculos. É impossível não falar em comunicação e entretenimento sem fazer um recorte social da democratização desse espaço, especialmente porque as pessoas são diversas e diminuí-las a um modelo não faz sentido e desrespeita a diversidade. Especificando o assunto, Rachel Moreno, pesquisadora, feminista e ativista da causa da mídia democrática, afirmou em entrevista ao canal TVT que, sobre as mulheres na mídia, os meios de comunicação diminuem a autoestima feminina quando reafirmam padrões estéticos e, com isso, naturalizam a violência.
“A mulher brasileira é branca, negra, japonesa, índia, alta, magra, velha, jovem, de todos os jeitos. A imagem na mídia é sistematicamente a mesma. [...] Essa diversidade, que faz a nossa riqueza, nunca é representada. [...] A mídia em geral tende a banalizar ou espetacularizar a violência, portanto, ela reproduz. Isso significa que, em vez de ser um ator social de peso e importante, [...] acaba trabalhando no que é o oposto, acaba trabalhando no sentido de continuar diminuindo, continuar reproduzindo preconceitos e estereótipos, continuar naturalizando a violência, e é uma lástima que isso aconteça, é um anti serviço.”
Tal apagamento histórico e o pouco espaço para a mulher no setor, que são consequências diretas do patriarcado, foram responsáveis por lá atrás cultivar uma questão que apenas hoje em dia está sendo alterada, que transformou a imagem da mulher na representação como algo sistematizado. A presença constante do homem frente ao trabalho no entretenimento controlou por muito tempo - até hoje, apesar de estar perdendo força - a narrativa, utilizando-se da estigmatização de um padrão imposto que define o papel da mulher apenas como objeto de desejo ou inspiração.
Desde o princípio, a figura feminina é imposta, na grande maioria das vezes, como alguém frágil, que deve estar sempre linda, bem vestida e pronta para servir um homem que esteja protagonizando uma produção. Por ter sido historicamente criado e comandado majoritariamente por homens, o entretenimento usa a sexualização da mulher como uma forma de satisfazer o desejo masculino e reforçar uma visão prejudicial à imagem da mesma. Mesmo quando as personagens femininas estão em uma posição de destaque, o corpo muito sexualizado, a pouca roupa e o reforço do estigma são mais enfatizados, com o claro e único objetivo de agradar consumidores homens e não de representá-las como verdadeiramente são.
Moreno já havia adiantado anteriormente que a mídia tende a banalizar e espetacularizar a violência, principalmente na maneira como afirma a sexualização . As produções audiovisuais, seja no cinema, na televisão, ou no mundo dos games, endossam a visão que a sociedade tem a respeito das mulheres e de seus corpos.
A valorização dos padrões de beleza, que dizem respeito a corpos expostos não relevantes para a trama, faz com que o corpo feminino seja utilizado pela indústria para reafirmar uma imagem feminina nada democrática, sempre associada a figura protagonista masculina como uma presença secundária, de falas insignificantes, forte teor sexual e/ou como dona de casa.
“Na verdade, a Constituição garante que todos nós temos direito à comunicação, e comunicação significa: eu sento, olho e vejo, e de repente eu falo e você ouve, a gente tem dois papéis. [...] Mas acontece que nós não temos democratização da comunicação nesse país. Todos os meios de comunicação ‘tá’ na mão de meia dúzia de famílias que decidem o que nós vamos ver, o que nós não vamos ver e como nós vamos interpretar o que eles escolhem nos mostrar. [...] isso não é democracia.” - Rachel Moreno.
No ano de 1970, Ann Kaplan, uma das fundadoras da abordagem feminista da crítica cinematográfica, junto a Laura Mulvey e Mary Ann Doane, “utilizaram referências da psicanálise e da semiótica em seu livro ‘A mulher e o cinema, os dois lados da câmera’ para mostrar como os signos do cinema são “carregados de uma ideologia patriarcal que sustenta nossas estruturas sociais e que constrói a mulher de maneira específica”. A autora se concentrou na questão do olhar masculino, assim como Laura Mulvey, para indicar como o cinema possui uma linguagem masculina e, caso as feministas quisessem mudar a visão estereotipada e padronizada em cima da mulher, não poderiam nem mesmo fazer uso deste cinema e desta linguagem, ao menos não da forma mais usual.
Portanto, nas “telas” de um modo geral, “isso acaba envolvendo a espectadora feminina, que é orientada em seu desejo em direção a uma ordem social e a uma posição de significado dentro da imagem. Representada como o próprio local da sexualidade, objeto fetichizado, o cinema especifica a mulher nessa ordem a partir do qual se cria a identificação”, apontam as autoras.
A título de exemplo, a comunicação audiovisual é responsável pela existência de diversos estereótipos que permeiam a retratação da mulher no cinema. A hipersensualidade é um dos melhores exemplos para retratar o machismo e o fetichismo presentes na mídia. A personagem hipersexualizada está sempre rodeada de homens, geralmente é a única mulher do elenco e os seus diálogos vêm acompanhados de uma explícita tensão sexual provocada intencionalmente pela personagem. Em diversas tramas, tal sensualidade é utilizada como arma secreta para livrá-la de emboscadas ou conseguir vantagens. É como se a mulher, em sua condição de pessoa frágil, precisasse disso, pois sozinha não teria sucesso.
Um exemplo notório é a construção da Viúva Negra nos filmes e HQ’s da Marvel. Interpretada por Scarlett Johansson nos cinemas, a espiã é apresentada como extremamente inteligente, forte e poderosa, mas, em contrapartida, super sexualizada, com um uniforme justo que marca toda a forma de seu corpo. Pode ser uma cena de luta violenta, uma festa ou uma simples conversa, a atenção é atraída quase que somente para as suas curvas. Outro ponto importante é que a personagem tem todos os seus diálogos, seja com seus amigos ou inimigos, desenvolvidos para que exalem erotismo. A aproximação corporal, o tom de voz e as palavras do roteiro trazem essa conotação. É como se mesmo com todos os seus tributos de heroína, precisasse disso para fugir de sequestros, ganhar uma batalha ou validar sua opinião frente aos colegas - os Vingadores, nesse caso.
À esquerda, Viúva Negra nos quadrinhos da Marvel, à direita, nos filmes. Imagem/reprodução: internet
Nos filmes de ação com personagens femininas em destaque, a heroína é quase sempre retratada de maneira sexualizada. É possível observar a intenção dirigida de um jogo de câmera, por exemplo, em perpetuar ainda mais essa imagem. Com uma insistência constante no foco em partes do corpo estratégicas das mulheres, os takes chegam forçadamente a contar essa história. Produções nesse estilo também foram protagonizadas por Gal Gadot (Mulher Maravilha), Margot Robbie (Arlequina), Carla Gugino (Watchmen) e Angelina Jolie (Tomb Raider), por exemplo.
Sobre Tomb Raider, Lara Croft, personagem criada para a franquia de games e interpretada nos cinemas pela atriz Angelina Jolie, foi sexualizada desde a sua primeira versão para consoles, quando seu criador, o inglês Toby Gard, aumentou acidentalmente em 150% o tamanho dos seios da protagonista, algo que foi aprovado pelos desenvolvedores do game e mantido ao decorrer dos anos. Inclusive, Angelina precisou usar próteses de silicone nos seios durante as gravações do filme, para que eles ficassem mais similares ao que era representado pela personagem no videogame.
À esquerda, Lara Croft nos jogos, à direita, Angelina Jolie nos filmes da franquia. Imagem/reprodução: internet
Exemplos como os de Tomb Raider não faltam. Na coleção de filmes da franquia OO7, as produções possuem um protagonista masculino sempre acompanhado por mulheres com uma beleza altamente padronizada de rosto e corpo, com uma valorização muito maior de seus atributos físicos em detrimento de seu desenvolvimento. O mesmo ocorre na franquia Missão Impossível.
Falando um pouco mais sobre a Mulher Maravilha, seu criador, William Moulton Marston, de acordo com sua biografia escrita por Jill Lepore, projetou na heroína suas próprias experiências e fetiches. De acordo com matéria do site Época sobre o criador, Marston se dizia progressista e apoiador do movimento feminista. “O criador acreditava no poder de influência dos quadrinhos e queria transformar Diana em uma espécie de propaganda, para educar os meninos a viverem em um mundo com mulheres fortes. Entretanto, também acreditava que para sua contribuição funcionar, o sexo deveria fazer parte da receita. De acordo com seus pedidos, a Mulher-Maravilha foi desenhada com base nas pin-ups que Alberto Vargas publicava na revista masculina Esquire: esguias, com seios fartos e cabeleira vistosa. Não é à toa que Diana constantemente laçava seus adversários, sendo também amarrada por eles em posições exóticas, com correntes e cordas, o que retratava as preferências sexuais de Marston”, diz a matéria. Esse estereótipo da heroína ficou marcado até os dias de hoje. Vale ressaltar que a atriz Gal Gadot, assim como relatou em várias entrevistas, sofreu ataques por ser “magra demais”, e não condizer com as fantasias e imaginações do público.
É possível observar a maneira como personagens femininas servem de escada para o desenvolvimento de seus colegas homens. Séries de televisão como Supernatural, por exemplo, especialmente por ter estreado em 2005, período com poucas discussões sobre o assunto, normalmente costumam utilizar as mulheres da trama para o engrandecimento da narrativa da forte presença de seus protagonistas masculinos, diminuindo a significância dessas personagens na história - o que mudou ao longo do tempo.
A hipersexualização feminina existe também no mundo das animações e é uma das formas mais conhecidas de fan service em animes, que siginifica, na teoria, fornecer ao espectador o que ele quer ver. Isso pode aparecer na forma de easter eggs (referências à outras produções), cenas românticas entre possíveis casais e o apelo sexual.
Aqui, a situação permanece com o mesmo objetivo de outros lugares do audiovisual, mas justificados por roupas que não cobrem nada ou que rasgam em lugares improváveis e impróprios durante batalhas e enquadramento de ângulos que expõem a roupa íntima da personagem, por exemplo.
Não há nada de errado com fan service e com o apelo sexual, mas isso se torna um problema quando ele é usado em excesso ou em personagens menores de idade, como é o caso dessa indústria em específico. A personagem Tamaki Kotatsu, de Fire Force, é talvez uma das personagens cuja hipersexualização é mais fortemente explicitada. Ela não apenas fica completamente nua em uma quantidade absurda de vezes durante o anime, como também tem apenas 17 anos.
Na verdade, todas as personagens de Fire Force são hipersexualizadas em algum momento da história: são mostradas tomando banho, têm seios extremamente grandes e usam roupas reveladoras. O tratamento dado à personagem no anime foi criticado, mas muitas pessoas ainda permaneceram defendendo o apelo sexual da história, questionando, por exemplo, se uma menina, por ser menina, não poderia ser sexy.
Cenas de Fire Force. Imagem/reprodução: internet
O anime K project é um outro exemplo. A primeira personagem, Seri Awashima, e a segunda, Neko, também possuem suas imagens sexualizadas de uma maneira desproporcional e não relevante para a história.
Cena de K Project. Imagem/reprodução: internet.
Cena de K Project. Imagem/reprodução: internet.
Para Theodor Adorno e Max Horkheimer, referências no estudo da comunicação e do entretenimento, em “A indústria cultural”, o consumidor em geral busca alcançar o prazer sem esforço algum e qualquer estrutura que exija uma discussão intelectual é totalmente evitada. Os olhos do espectador são estimulados exatamente nas cenas escolhidas pela indústria. Além disso, ele se satisfaz com a produção do sempre igual, e este igual, precisa também ter semelhanças com a vida real. Caso contrário, serão também evitados. Com isso, o consumidor se prende em uma enorme teia, por achar que o que lhe é dado, é necessário para sua vida, para o seu prazer, tornando- se um eterno consumidor.
Para tanto, as coisas, mesmo que tardiamente, têm mudado. Personagens bem exploradas, com histórias bem desenvolvidas e com um protagonismo que diz respeito a quem elas são e não ao que fisicamente representam estão crescendo cada vez mais. Rachel Moreno lembra que a democracia da comunicação só acontece quando a diversidade tem espaço para contar as suas histórias.
“ [...] É urgente e fundamental que a gente tenha efetivamente mais vozes dizendo o que pensam, mostrando como veem as coisas, para que cada um de nós possa formar sua própria opinião e para que a gente tenha informação, tenha cultura, que é essa a função predominante da mídia.”
De acordo com o IBGE, as mulheres representam 52% da população, enquanto para o censo americano, elas são responsáveis por 85% das decisões de consumo. Imagens apresentadas pela mídia não fazem sentido quando são apresentadas de maneira estigmatizante porque a mulher, especialmente a mulher brasileira, é diversa e democrática. O recorte social dessa democratização no que diz respeito à comunicação social é imprescindível para que uma visão crítica e justa seja feita, pois só assim o bem comum é atingido.