Por Maria Clara Aoki
O número 1024 da Rua Monte Alegre, zona oeste de São Paulo é a esquina de um quarteirão completamente preenchido pela Pontifícia Universidade Católica(PUC-SP). Mas essa esquina, não é muito bem a PUC, é um lugar separado, onde três arcos centrais dão entrada a um pequeno saguão. No canto esquerdo está a bilheteria e ao centro, na mesma direção dos arcos, portas de vitrais arqueadas guiam a outro saguão, que guarda três pesadas portas metalizadas anti-incêndio. Quando abertas elas permitem o acesso a um enorme espaço com 672 poltronas escalonadas e um palco de madeira de quase 15 metros de profundidade. Nas extremidades da fachada, grandes e cumpridas janelas completamente transparentes, sem vidros escuros ou coloridos, de dia trazem a curiosidade para se aproximar e enxergar o que é que se esconde dentro daquele lugar. De noite dentro desse mesmo lugar, fortes luzes amarelas o recheiam, irradiando na transparência das janelas, fortes feixes de luz que iluminam um pouco do jardim que se encontra à frente. Como um baú de tesouro dos filmes, que quando se abre, ilumina. Ali fica um Teatro, que também ilumina os rostos de quem quer enxergar seus preciosos espetáculos.
O Teatro da Universidade Católica (TUCA) leva em toda sua história, desde seu nascimento: a força da resistência, do vanguardismo e da união estudantil. Estes movimentos estão até desenhados e impregnados nas paredes do teatro que recebe dos seus funcionários um carinhoso apelido, “Tucão” (o Teatro Principal), para diferenciar do Tucarena, o outro teatro também presente no subsolo do Tuca. O local preserva as marcas dos incêndios sofridos em 1984, com os resquícios deixados propositalmente pelo o arquiteto Joaquim Guedes, responsável pelo projeto da reconstrução em 1986, com os restos dos acabamentos em cores pretas, expostos sobre os tijolos do teatro, trazendo o ar de destruição e estrago. Rememorando imediatamente, em quem entra naquele espaço, as violências e repressões já sofridas ali. Este marco arquitetônico parece na verdade, uma resposta trazida para o abaixo- assinado feito pelos alunos e professores da universidade, que indicava a necessidade de que ficasse inscrito nas paredes do Teatro- os dois incêndios que tentaram destruir um local que é parte fundamental da memória cultural da cidade, e também da memória de inúmeros momentos da resistência à ditadura civil-militar.
Essa tortuosa época do Brasil, divide a década de 60 com o nascimento do TUCA em 1965. Mesmo antes da inauguração do espaço, ele já se concretizava como movimento teatral e político, com atuação do Grupo TUCA criado pelos alunos no Diretório Central dos Estudantes(DCE) da PUC-SP, em 1964. Com a ideia de se tornar um possível caminho de atuação e união do movimento estudantil e dos cursos da universidade, articulado à concepção política de formação dos Centros Populares de Cultura propostos pela UNE(União Nacional dos Estudantes).
O Grupo TUCA
O Grupo era completamente composto por estudantes selecionados da PUC-SP e contou com o importante apoio de diversos setores acadêmicos da faculdade e de profissionais ligados ao teatro de resistência. Para dar início aos seus projetos e estudos, contaram com a verba do DCE e com a ajuda do presidente da Comissão Estadual de Teatro, Nagib Elchener. E assim foram contratados 6 profissionais de teatro aliados a movimentos de grupos católicos de esquerda- JUC- Juventude Universitária Católica e a AP- Ação Popular. Importantes nomes foram trazidos, como “Roberto Freire, teatrólogo de prestígio, ex-diretor do Serviço Nacional de Teatro, ex-redator do Jornal Brasil Urgente da Ação Popular, que assumiu a direção artística do grupo; Silney Siqueira, ator e diretor ligado aos trabalhos de educação popular que foi o diretor de Morte e Vida; Elza Lobo educadora popular; José Armando Ferrara, que assumiu a cenografia e Chico Buarque, jovem compositor, então conhecido como carioca e estudante da FAU-USP e que assume a direção musical” é o que conta o acervo da história do TUCA disponível no Teatro e em seu site.
Estrearam nos palcos recém construídos do TUCA, em 11 de setembro de 1965, no mês seguinte da inauguração, ou seja, os ensaios da peça tiveram início antes da conclusão das obras do Teatro. E então, quando aquele lugar ainda tinha "cheiro de novo" saindo das tintas das paredes, eles encenaram “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo e Neto, que denuncia as privações impostas pelo sertão nordestino. O autor expõe sem sutileza as dificuldades da aridez da terra e injustiças contra o povo, que naquele momento histórico, conversava diretamente com a situação autoritária e opressora que assombrava o Brasil no Regime Militar. A peça levou o público à loucura, sendo declarada como um verdadeiro sucesso, recebeu premiações pelo Associação Paulista da Crítica de Teatro e no Festival de Teatro Universitário Nancy na França, em 1966, se tornando internacionalmente conhecido, passando também por Portugal. Com as repercussões após o prêmio, a imprensa estrangeira e nacional fortaleceram e consolidaram o trabalho do Grupo TUCA.
Nos anos seguintes o grupo passaria por transformações, tanto em mudanças de composição e direção artísticas, quanto na experiência cultural, pois entram em contato com o teatro nacional popular, além do interesse em formar públicos do teatro universitário. E assim, foram construindo seu repertório de experimentação da contestação e da criação artística coletiva. Mesmo sofrendo repressão, eles continuariam acesos até o final da década, com as peças O&A, em que não havia nenhum diálogo- todas as situações eram apresentadas através do gesto, da música e principalmente, por meio da expressão corporal feita por 30 estudantes. Na tentativa de dificultar o trabalho de censura da época, mostrando as adaptações feitas para manter a criticidade nas manifestações artísticas no período de regime militar, já que a peça tratava do consciente ou inconscientemente conceito materialista do homem, mas mesmo assim houveram censuras.
Continuaram na produção com “Comala”, em 1969, e “Terceiro Demônio”, em 1970, que foi uma das finalistas do Prêmio Universitário do Teatro Sul Americano. Até não resistirem a radicalização da censura, as perseguições policiais que chegaram até a prisões de alguns membros e a desarticulação do Movimento Estudantil, que foi uma força vital para a formação deste Teatro Universitário. Mal sabiam que o Grupo Tuca, um grupo feito por estudantes, com fome de aprender, poderiam definir a identidade de um teatro e representá-lo, marcando sua trajetória no período de ditadura. Eles aumentaram a voz do teatro brasileiro, protagonizaram o movimento estudantil e sobreviveram até onde conseguiram no período de sufocamento artístico, transformando o TUCA em um marco simbólico, geográfico e político da história da cidade, naquele período histórico. O Grupo Tuca em 1971, Anos de Chumbo, fecha suas cortinas, e vão embora pelas coxias, também por divergências internas e pela falta de apoio da Universidade. O Grupo, o Teatro e a Universidade tomam rumos diferentes.
O Teatro TUCA abre espaço para outros coletivos
A atuação do Grupo, abre espaço para o TUCA se tornar um espaço marcado por coletivos universitários de dentro e de fora da PUC. No Acervo de Documentação e Memória do TUCA, é possível encontrar registros do período de 65-69 que mostram ensaios e apresentações de grupos de teatro profissional, amador e principalmente universitário. Como o grupo formado por alunos da Faculdade de Engenharia Industrial (FEI),da Faculdade Coração de Jesus e da Faculdade Paulista de Direito chamado O Grupo Dyrajaia Barreto (GRUDYBA); O Grupo Teatro Novo – Aurk-Crusp, composto por estudantes moradores do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP); o Teatro dos Universitários de São Paulo (TUSP);o Teatro da Balança (TEBA), dos estudantes da Universidade Presbiteriana Mackenzie e também o Teatro Universitário de Lorena.
Outro marco para a história do teatro universitário, aconteceu em outubro de 1969, a I Mostra de Teatro Universitário, sediada no TUCA. Autores como Bertold Brecht, Fernando Arrabal, Jewgei Schwarz, Peter Weiss e autores nacionais como Plínio Marcos, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drumond foram usados de repertório para o desenvolvimento de concepções experimentais artísticas criadas pelos coletivos estudantis, relacionando com questões da realidade brasileira. Essas experimentações, mesmo depois do fim do Grupo TUCA, continuaram sendo feitas mesmo por alunos da PUC, com a atuação de outro coletivo universitário o Grupo TUPUC- Teatro Universitário da Universidade Católica, nos primeiros anos da década de 1970.
O sumiço do Teatro Universitário na PUC
Depois da década de 70, houve uma decadência na mobilização do teatro universitário na PUC. O principal questionamento é de entender o porquê dessa movimentação não acontecer mais. Indo ao encontro com o cenário principal dessa história, o próprio TUCA e questionando seus funcionários sobre esse tal sumiço, ninguém sabe muito como responder, parecem nunca terem pensado nisso. Mas lembram e trazem à tona outros personagens, os estudantes artistas da PUC “São eles que tem que fazer acontecer!”.
Esses “eles” são referentes aos estudantes do curso de Artes do Corpo, oferecido pela Universidade, desde 1999. No entanto, Rosa Maria Hércules, professora desse curso há 24 anos, explica que o teatro universitário é feito com estudantes vindos de diversos cursos, com alunos que não necessariamente gostariam de se profissionalizar na carreira de ator, prova disso, é que na época do Grupo TUCA, o curso de Artes do Corpo estava longe de existir, ou seja, os integrantes eram alunos de outros cursos. O curso poderia sim auxiliar esse grupo universitário, com os professores, alguma ajuda na direção, contribuir com o preparo corporal. Ela finaliza explicando que essa não é função do curso e que ele tem que estar focado em seus processos pedagógicos, seus projetos de formação, nas suas reformas como qualquer outro curso da universidade.
Análise histórica
Outras reflexões sobre atual falta de mobilização para criação de coletivos são dadas pelo professor de Artes do Corpo, Antônio Rogério Toscano. Ele explica que na época de efervescência teatral feita por estudantes, havia uma geração vinda nos anos 60 que cumpria essa expectativa de ação coletiva de resistência política á ditadura. O teatro profissional estava bastante debilitado por causa da censura e o teatro amador naquele momento também tinha uma outra configuração, muitos coletivos nasciam como formas do teatro amador, porque não haviam escolas de profissionalização e organização de carreira, então eles se reuniam para fazer teatro em ilhas de resistência, em coletivos que eram espaços de manifestação da liberdade de opinião, política e de expressão, eram amadores no melhor sentido etimológico da palavra pois eles "amavam fazer aquilo", sem a preocupação na profissionalização de carreira.
Nesse mesmo contexto, a PUC também tinha uma outra perspectiva, era um espaço de grande resistência ao regime militar, com bastante ativismo por parte de alunos que chegaram a ser perseguidos e alguns mortos pela Ditadura. Havia também a atuação política de professores, fortes na recusa à conciliação com os federais, com os coronéis e com os sujeitos militares. A Pontifícia era um território favorável a essas manifestações políticas e o Tuca como o teatro universitário condensava essa expectativa. Na sua opinião o TUCA, hoje, não é um teatro universitário, é um espaço de teatro profissional que abre algumas datas, para o curso de Artes do Corpo e para algumas atividades da PUC. A lógica empresarial que rege as temporadas do Tuca muitas vezes inibe que haja uma ocupação sistemática e permanente por parte dos artistas da PUC ou de coletivos teatrais que possam emergir na faculdade, o que antes era muito comum. Toscano afirma e também acrescenta a reflexão acerca da realidade neoliberal arremetida em nossa sociedade, que deixa evidente a ideia de construir carreiras individuais E considera a ideia de coletivos teatrais cada vez mais desafiadora, porque ele envolve o contato diário com a diferença, com alteridade, com o debate, com a construção de saberes por uma forma compartilhada, coletiva. E inclui que essa é também uma consequência da pandemia- a dificuldade do encontro, ainda mais perceptível pela revolução digital em que se encontra o mundo, que diminui o espaço de construções coletivas porque dificultam, mais uma vez, o encontro físico- que é uma “tradição analógica do teatro.
Mas, na tentativa de ser uma exceção a essas influências e se tornar resistência ao ressuscitar o espírito de coletividade, em 2023, cartazes foram espalhados pela universidade chamando alunos para se unirem e se mobilizarem para refundar um Grupo de teatro na PUC-SP. O projeto feito por estudantes de diferentes cursos, receberam cerca de 50 alunos que compartilhavam o mesmo interesse. Alguns encontros foram feitos, mas tiveram sérias dificuldades em formalizar o núcleo, é o que explica uma de suas idealizadoras Ana Carolina Vieira, que precisava convencer a Reitoria, fazendo uma apresentação estruturada do que seria o grupo, quem participaria, seus objetivos, para conseguir o direito de usar as salas de artes do corpo. Seus alunos contam que os espaços estão com pisos de madeira comidos de cupim e tetos com buracos. A professora Rosa afirma que quem deveria ter o interesse de formar um Teatro Universitário é a própria universidade. Ana considera que quando alunos procuraram os órgãos responsáveis não foi oferecido nenhum tipo de ajuda e também "eles" não se mostraram muito empolgados com a ideia.
Esse grupo recém formado não procurou usar o espaço do TUCA, pois estava tendo ensaios de peça em dias de semana, além de ter a administração desvinculada da PUC-SP. No entanto, quando questionado, o diretor geral do TUCA, Sérgio Rezende disse que o lugar está de portas abertas para receber seus alunos. Os caminhos para contatar o teatro é ou pela coordenação de um curso ou a tentativa pela Reitoria, eles conduziram a ideia para o Setor de Eventos do teatro, que analisará se o espaço poderá ou não ser usado.
O teatro pode ser usado para eventos acadêmicos de segunda á quarta(dependendo do calendário TUCA, de quinta também) pois possuem contratos com as peças apresentadas, que dão o sustento econômico para o espaço, e por uma questão operacional, como explica Sérgio, não há outros eventos em dia de espetáculo. Os alunos que querem usar o Tuca, terão que se adaptar ao espaço emprestado, também não costumam poder guardar cenários lá. Um recente exemplo é dado pela aluna artista do corpo Beatriz Merino.Ela conta sobre a Semana de Artes do Corpo, que aconteceu nos dias 16 à 20 de setembro, e com orgulho diz que depois de 4 anos, eles conseguiram trazer espetáculos gratuitos para serem apresentados no Tucarena, na tentativa de democratizar o teatro, já que o ingresso de meia-entrada mais barato de uma peça do TUCA atualmente é 80 reais, no entanto, por causa do outro espetáculo que está em cartaz, eles não podem mudar os riders de luz, o máximo que se pode fazer é ligar e desligar a iluminação.
O TUCA deixou de ser um lugar frequentado por teatros universitários, devido as dificuldades de uso e por se tornar um espaço voltado para o teatro profissional e de alto custo, o que explica o preço dos ingressos e com isso a definição de público. Em todos os âmbitos parecem existir problemas e condições dadas pelo falta de projetos institucionais de cultura vindos da PUC, em que haja preocupações com espaços, alunos e temáticas, que por ser uma Fundação tem a obrigação e o compromisso de trazer retornos à comunidade, por ser isentada de impostos, mas ela parece estar cada vez mais com seus objetivos ligados ao lucrativo. Por isso, não dá o mesmo apoio que na época do Grupo Tuca, que só conseguiu se erguer com a mobilização de muitos estudantes junto com a indissociável presença do Movimento Estudantil, e principalmente, com o apoio e a intervenção de setores acadêmicos da PUC para contratação e escolha de profissionais para auxiliar o Grupo e claro com o Tuca como espaço para experimentação e manifestação artística. Ou seja, o Grupo teve muitas mobilizações como apoio, a ausência desses suportes complicam o retorno do teatro universitário na PUC, pela falta de coletividade de um todo, formado pela Instituição, seus espaços e seus alunos que como disse a estudante do último ano de artes do corpo Helena Veliago "não se faz teatro sozinho, não se faz nenhuma cena sozinho".