Bolsonarismo herda votos dos tucanos no Estado de São Paulo

Especialistas acreditam que o apoio de Bolsonaro levou à queda do tucanato em São Paulo
por
Ana Beatriz Assis, Danilo Zelic, Evelyn Fagundes e Maria Sofia Aguiar
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08/12/2022

Pela primeira vez em 28 anos, o PSDB foi derrotado nas eleições para o governo do Estado de São Paulo. Na disputa eleitoral entre Fernando Haddad (PT) e Tarcísio Freitas (Republicanos), a vantagem que levou o apoiador do presidente Jair Bolsonaro à vitória foi de 10,54%. Nesse sentido, especialistas acreditam que a ascensão de Tarcísio é explicada pela queda da importância do PSDB, em que os votos foram direcionados para uma direita mais conservadora.

No segundo turno da disputa, o candidato do Republicanos obteve 55,27% dos votos válidos contra 44,73% do petista. De acordo com dados do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), foram 6,76% votos brancos e 4,04% nulos. Em relação à taxa de abstenção, o percentual caiu de 21,63% para 21,07%, do primeiro para o segundo turno da eleição deste ano.

Na cidade de São Paulo, o candidato pelo PT, Fernando Haddad, venceu por 44,38%. Já no interior do Estado, quem venceu foi Tarcísio de Freitas. Grandes cidades interioranas como Bauru, Campinas e São José dos Campos tiveram resultado favorável ao aliado de Bolsonaro: 50,95%, 46,13% e 53,45%, respectivamente.

 

Mapa de resultados de São Paulo no primeiro turno, via: O Globo
Mapa de resultados de São Paulo no primeiro turno, via: O Globo

Bolsonarismo conquista espaço do conservadorismo tucano

Pesquisadora sobre o conservadorismo no Brasil, a professora doutora na PUC-SP Katya Mitsuko acredita que o pensamento conservador nos dias atuais, liderado por Bolsonaro e seus aliados, é um dos fatores que levou Tarcísio a ser eleito. Katya acredita na existência de uma ampla substituição do poder político tucano pelo poder bolsonarista justamente pelo discurso “personalista” que utiliza o elemento da família para chamar os eleitores, uma característica do conservadorismo brasileiro.

De acordo com Katya, a denominação de família tradicional, por exemplo, foi criada para servir como um símbolo ao cidadão conservador, uma espécie de identificação global com os pares que se identificam com essa representação. Como símbolos da família tradicional, a professora descreve essa representação utilizando o homem, a mulher e filhos. Ao fazer um contraponto com o cenário nacional, ela afirma: “Mentira, a história do Brasil deixa isso claro”.

Segunda Katya, é difícil encaixar esse padrão da família tradicional na sociedade brasileira, lembrando que as pessoas podem ter vida fora do casamento. Toma como exemplo o período de escravidão no país onde “pessoas foram casadas e amantes dos seus escravos”. “O mundo não é assim, mas, no entanto, se cria uma tradição e se pauta todo um movimento social em cima de uma tradição criada”, afirma.

Esse viés ideológico se firmou como uma forma de resposta às mudanças, com o desejo por estabilidade na condição social e econômica. Nesse sentido, Katya afirma que o pensamento conservador muitas vezes parte de uma classe mais alta, que quer consolidar sua posição na elite.

Analisando o histórico paulista, ela acredita que a força política da direita também não é de hoje e houve um longo processo histórico que perpetuou a tradição conservadora. “No meu entender, isso está estabelecido desde as bases da cafeicultura dos primórdios do republicanismo paulista. Isso é muito antigo”, afirma.  Dessa forma, a pesquisadora aponta que, ao longo dos anos, apesar do conservadorismo ter se mantido presente no Estado, ele se alterou, pois é adaptativo.  “Não dá para dizer que nós estamos falando dos mesmos conservadores de 1920 e que um sujeito conservador é imediatamente fascista”, argumenta.

Katya é moradora do município de Cerquilho, a 137 km da capital, no interior paulista, - que IDH alto de 0,782, segundo o Censo de 2010. Ela destaca que a cidade é bonita, limpa, tem transporte público gratuito e na maior parte dos anos foi liderada por partidos de direita. Por isso, segundo ela, se gera uma sensação de estabilidade no munícipe em votar na direita.

“Uma das coisas que o cerquilhense diz é: ‘Ah, vai mudar partido, mas a cidade continua’. Então também tem essa ideia de que ‘Para que eu vou votar na esquerda?’”, afirma.

Segundo apuração da reportagem, a gratuidade do transporte em Cerquilho é parcial e se baseia no serviço de “Tarifa Zero”, implementado e bancado pela gestão municipal desde outubro de 2020 e direcionado para toda população cerquilhense, cerca de 52 mil habitantes, segundo estimativa do IBGE 2020. De acordo com a prefeitura, o serviço inclui apenas algumas linhas de ônibus e com horários tabelados, não contemplando todos os itinerários de transporte público do município.

A professora destaca a religiosidade como ferramenta amplificadora para o pensamento conservador nas eleições deste ano. Associando a sensação de nostalgia ao conservadorismo, ela acredita que essa vontade de estar no passado também está presente no discurso evangélico, em que se utiliza a fé como forma de manter o passado no presente. "Os reacionários do conservadorismo acham que podem fazer a marcha ré, 'a família tradicional é o homem, a mulher e os filhos", afirma.

Outro ponto que a pesquisadora aponta sobre o conservadorismo nas igrejas é em relação à capacidade de modernização do discurso. Analisando algumas correntes evangélicas dos Estados Unidos e do Brasil, Katya afirma que essas se fundam pela tradição, mas buscam constantemente se manter atuais. "O conservador nem sempre vai se apegar apenas ao velho, muitas vezes a ideia é ressignificar a tradição de modo que ela se apresente como nova. É por isso que temos sempre conservadores presentes, eles se refazem o tempo todo", diz.

A cientista política Maria do Socorro Sousa Braga, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), acredita que uma explicação para a direita estar muito presente no interior é a forma como o Estado desenvolve o seu crescimento econômico.

“O interior de São Paulo é muito rico. Recebe muito investimento. Tem várias empresas e, muitas delas, a direção apoia o atual presidente. Que, por sua vez, existe todo um trabalho para conseguir o apoio dos seus funcionários para o mesmo grupo político, que é o de Jair Bolsonaro”, ressalta Socorro.

Além disso, a cientista política reforça que a visão de estado mínimo agrada o conglomerado empresarial, e isso explica o motivo do antipetismo na região que, por tamanha força, representa o estado.

“A maior parte desse segmento empresarial apoia essa visão de Estado mínimo. Enquanto o PT, partidos de esquerda defendem um Estado provedor, de políticas sociais que abrangem a maior parte da sociedade, especialmente, as mais vulneráveis. Essa visão acaba se contrapondo a boa parte dos empresários que controlam as empresas no interior de São Paulo”, afirma Socorro. “Isso afeta o comportamento eleitoral dos trabalhadores dessas empresas, que podem temer seus empregos, caso venha uma força em outra direção daquelas que eles acreditam ser essencial para a continuidade da existência das empresas, o que não é verdade.”

Socorro menciona que a existência de igrejas tanto católicas como evangélicas também pode influenciar no comportamento eleitoral.

Para Monica Muniz, professora do departamento de sociologia da PUC-SP, esse conservadorismo também é representado, principalmente, pela questão fundiária, simbolizada por uma elite agrícola do interior do Estado.

Essa perspectiva contrapõe-se à visão que a maioria do eleitorado conservador tem sobre as pautas de esquerda nesse campo, como, por exemplo, o Movimento Sem Terra (MST), afirma. “Coloca muito medo nessa elite do interior. É uma elite que está enraizada e tem muito temor ligado ao discurso da reforma agrária ou do MST”, diz a professora ao CP Digital.

A queda do PSDB 

De acordo com o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), nas eleições de 2022, 39 cidades da região metropolitana somaram 16,4 milhões de eleitores, e os 606 municípios do interior, 18,2 milhões. Tarcísio de Freitas venceu na maioria das cidades do interior. Ele perdeu para Haddad na capital do Estado.

Em 2018, na disputa entre Márcio França (PSB) e João Doria (PSDB), o tucano foi eleito no segundo turno com 51,7%. França teve 56,1% dos votos da Grande São Paulo e 41,2% do restante do Estado.

Em 2010, Geraldo Alckmin venceu no primeiro turno, com 50,6% - 46,4% na capital e 54,6% no interior. Em 2014, foi reeleito, vencendo em todas as cidades paulistas, com exceção de Hortolândia.

Anteriormente, em 2006, 2002, 1998 e 1994, foram eleitos José Serra, Geraldo Alckmin e Mário Covas (dois mandatos), respectivamente. Todos do PSDB.

Maria do Socorro comenta que, quando Mário Covas (PSDB) foi eleito em São Paulo ao mesmo tempo em que Fernando Henrique Cardoso (PSDB) foi eleito presidente, teve início a força do partido no Estado, o princípio de um apoio contínuo que a região teve ao PSDB. Essa "dobradinha" entre o diretório estadual e nacional fez com que o interior de São Paulo tivesse muitos ganhos. Houve muito investimento no interior de São Paulo.

Mas em 2022 a hegemonia do partido nas eleições do Estado chegou ao fim. Socorro aponta que a derrocada ocorre paralelamente ao crescimento do bolsonarismo no interior de SP, sinalizando a piora do PSDB no Estado. Ela explica que o fim do PSDB já podia ser visto desde a união "bolsodoria". No segundo turno das eleições de 2018, o então candidato ao Estado João Doria se aproximou de Jair Bolsonaro (PL) em uma aliança política batizada de “bolsodoria” para angariar mais votos do eleitor de direita.

A cientista política argumenta que a aliança de parcela do PSDB com o bolsonarismo construiu uma barreira entre quadros mais velhos do partido, conhecidos como “cabeças brancas”. A ala de deputados jovens do partido que apoiavam Doria votava alinhados ao presidente Bolsonaro em muitas pautas no Congresso, contrapondo-se o posicionamento dos integrantes mais velhos da legenda.

Para Maria do Socorro, essa heterogeneidade do próprio partido foi um dos fatores responsáveis pelo seu declínio. A falta de um consenso de seus membros e de uma unidade que minimizasse os problemas internos da sigla, revelou que o PSDB não deu conta de se manter popular, em comparação com outras legendas de mesma estatura e história. Socorro resume a situação do partido na seguinte expressão: “cavou a sua cova". declara Socorro.

O pensamento conservador, segundo análise de Monica Muniz, professora do departamento de sociologia da PUC-SP, é regido por uma mudança social interpretada como um termômetro que serve de orientação a esse grupo. Como lembra a professora, a história mostra que o lema ‘Deus, Pátria, Família’, utilizado como slogan político pelo bolsonarismo, esteve presente em momentos significativos no país: no movimento Integralista de 1930; na Ditadura Militar de 1964; e no atual debate político.

As transformações sociais, políticas e econômicas que ocorreram durante esses períodos, impactaram na maneira como a parcela da população que se identifica como conservadora, e seus representantes políticos, age de acordo com o momento. “É a mudança que traz essa reação. Ficam todos desesperados e vão em busca da ordem”, aponta Muniz.

 

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