Por Julia Rugai
Nas ruas estreitas existe uma centena de portas antigas. Daquelas casas em que se imagina um senhor e uma senhora inventando coisas na sala de estar. As construções já estão pra lá nas casas dos dois dígitos de idade e o clima do ambiente é o de familiaridade. Esses detalhes, até então narrados com timidez, são um pouco do que se vê quando a caminhada é pelas redondezas do bairro do Bixiga, na Bela Vista, centro de São Paulo.
Conhecido como um dos núcleos mais tradicionais da cidade, o Bixiga concentra uma gama de descendentes de imigrantes italianos. A história de famílias que atracaram em solo brasileiro já há mais de um século está guardada em prédios e estabelecimentos de monte. Mas, como tantos outros bairros tradicionais de São Paulo, o reduto da Bela Vista não é diferente e, com o passar do tempo, tem sofrido mudanças.
Recentemente, a Justiça barrou a tentativa de construção de um conjunto de torres residenciais em um terreno do bairro. A área, pertencente ao Grupo Silvio Santos, era alvo de uma disputa entre o próprio grupo e o Teatro Oficina desde 1980. A obra teria seu início se a Justiça não tivesse vetado, em primeira instância, o andamento da construção. Como argumento, a juíza frisou a importância do bairro como um dos poucos em São Paulo que ainda guardam suas características originais, além dos danos ambientais que a obra desencadearia.
Mais do que uma preservação das características originais da Bela Vista, o Bixiga se move, diariamente, para manter sua cultura. Preservação que está na massa produzida nas cozinhas das cantinas, no pão artesanal das padarias, na sonoridade do acordeon e na vivência de quem tem a vida inteira vivida por lá.
Lima - provavelmente um apelido - é um homem conhecido por muitos de lá. Já na casa de seus 60 anos trabalha em alguns dos estacionamentos dos restaurantes da Treze de Maio. Não dá detalhes de como, nem o motivo de ter se estabelecido naqueles arredores, apenas diz que começou muito cedo e logo se viu parte da família de muitos que trabalhavam por lá. “Sabe o que é, o que eu vejo por aqui é que, mesmo quem não mora por perto, sempre volta para cá. Gosta do bairro, dos restaurantes, e aí fica inevitável não se lembrar da pessoa. Da maioria dos clientes que costumam deixar os carros por aqui, conheço quase todos, de anos.”
Entre uma frase e outra, Lima interrompia a conversa para abrir a porta dos carros para os clientes que chegavam ou deixavam os restaurantes do outro lado da rua do estacionamento. Simpático e atencioso, disse que já teve vontade de fazer outras coisas ― como tantos por lá ― mas, por motivos da vida e muitos outros, não abandonou o cargo e não o vê como algo que se exerce no fim da linha de uma vida de tentativas. Diz que tem orgulho. Além disso, Lima fala sobre as amizades diversas que se firmam ao longo dos anos por aquelas ruas. “Ano vai e ano vem, as coisas mudam, mas pouco. Parece que as pessoas continuam as mesmas e não se vão embora.”
Entre ele e alguns dos garçons da cantina italiana Roperto, existia um vínculo grande. “Hoje em dia”, ele conta, “as coisas por lá já não são mais as mesmas, muitos que já trabalharam lá não estão mais, também não sei dizer o motivo. Nossa, não sei nem dizer exatamente quantos sábados a gente já não teve juntos jogando bola, o dia inteiro. Era bom demais.” Pelas palavras de Lima e, do pouco de suas histórias, percebe-se que o bairro constrói diferentes relações.
Não há como andar por essas ruas e não atravessar as características portas da Basilicata. Com detalhes de uma arquitetura antiga, o lugar agora possui catracas para os clientes. A padaria de origem italiana carrega seu nome no pão. Um alimento tão simples e singelo, mas que ao redor do mundo carrega infinitos significados. Ao conversar com alguns dos funcionários, no balcão do estabelecimento, descobre-se que o pão italiano produzido nas cozinhas de lá, habita diversos outros restaurantes do bairro. Em outras palavras, existe um pouco da Basilicata em cada uma daquelas casas. Chega até ser engraçado pensar que, com tantos produtos similares e com a concorrência natural do comércio, exista tamanho laço.
Sua origem se dá lá para trás, em 1914. Jorge, 42 anos, um dos funcionários, apontou para uma das fotos na parede que, literalmente, conta a história de criação da rotisseria. A porta, alta porém simples, carregava o nome do restaurante e o número 288-2742, como o de telefone para contato. Não tão comum, atualmente. Jorge também conta que o tal pão nasceu com Felipe Ponzio, nome que também se encontra nos escritos da parede que tomam conta de descrever, resumidamente, a história do lugar. “A padaria”, conta, “se tornou, há uns anos, um empório e um restaurante. Não que já não fosse. Teve uma mudança comercial por aí, um embelezamento no interior e tal. Mas a essência, é a mesma.”
Com mais de 100 anos de histórias, o restaurante já viu diversos rostos passarem por lá. Dona Maria Alice, estava lá, como quase todo sábado de manhã. Morando lá por perto, sempre que pode, compra um pote de sorvete artesanal, sabor morango, para seus netos. Pergunto-lhe se já estão crescidos, ela responde que sim. Tímida, conta que o ato virou tradição e que, desde que começou com o costume, o pote de sorvete sabor morango sempre se encontrou na geladeira aos sábados. “Ai se não tivesse!”, ela diz. “Sempre vim muito aqui antes de ser o que é hoje. É como a padaria de esquina de qualquer bairro, sabe? Aquela que você tem certeza de que o pão tem boa qualidade, outros produtos também…Eu preferia antes, que era mais do bairro. Hoje já tá grande demais, mas tudo bem né? Até porque, nem é minha pra cuidar.” De um jeito receoso, dona Maria Alice contou mais algumas coisas. Ela entrou pelas portas de lá, pela primeira vez, com seu marido. Já falecido, deixou várias coisas na rotina para ela. Diz que não são obrigações, mas coisas que fazem parte de sua vida e que não abre mão. Do pão, café, até pegar jornal na banca.
Na banca, a qual apontou, não tinha ninguém, apenas uma cadeira que parecia de lugar fixo. Como aberta para os clientes da rua, imagino que mesmo sem ninguém por perto, não exista tanta coisa errada. Daquelas que o dono dá uma saidinha e o amigo da loja do lado fica guardando o lugar. Se precisar, ainda faz a venda e depois continuam a conversa.
Fato é que existem diversas vidas flutuando por aquele bairro. Perto do centro paulista, o ar é de de história. As construções impulsionam ainda mais essa sensação. Assim como a Basilicata, a Cantina Lazzarella também passou por atualizações ao longo dos anos, mas não deixou de lado os cuidados herdados por Naro, Nina e Olga Marina.
“No próximo dia 22 de abril, a gente completa cinquenta e um anos”, diz Carlos. “Cinquenta e dois!”, afirma o colega do lado. Neste dia, não pude conhecer a culinária, mas contaram um pouco sobre como é a vida por ali. Muito da música que se escutava durante as noites do restaurante sumiu com as consequências recentes da pandemia. Mas, como parte da tradição, aguentaram até as últimas, manter a interpretação das clássicas italianas.
Não há como passar algumas horas caminhando pelo reduto italiano da Bela Vista, sem ser invadido pela sensação de que existe por ali uma gama cultural extensa. Tudo parece de monte, multiplicado, e você pode até pensar que as coisas são iguais. Mas não. É o oposto.
Entender o argumento utilizado pela juíza, como apontado no início do texto, é fácil quando se tromba com algum morador das antigas e na troca de algumas palavras. Existe um motivo por trás das portas características e das paredes que remetem anos nunca vividos. É o resgate do que já se foi e, ao mesmo tempo, de perpetuar a história do bairro.