A arte da subversão sustenta corpos dissidentes na moda

Quando a moda proclama inclusão mas conserva moldes excludentes, o discurso revela falhas e a diversidade concreta permanece fora da cena
por
Giovanna Montanhan
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09/09/2025

Por Giovanna Montanhan

 

A moda incorporou a palavra diversidade como selo de modernidade, mais por protocolo do que por convicção. Repetiu-a em passarelas, bordou-a em campanhas, espalhou-a em editoriais até transformá-la em verniz. E sob o verniz, o nada. O discurso, saturado pela repetição, perdeu peso: virou ladainha adestrada para tranquilizar consciências enquanto a máquina continuava a girar. A diferença nunca foi princípio, apenas ornamento: exceção bem calculada, peça de vitrine que não interfere no projeto. Nesse cenário decorativo, a esbeltez permaneceu soberana, imune, como se nunca tivesse sido questionada.

Hoje, a obsessão estética ganhou novos contornos. O corpo que antes era disciplinado por dietas passou a ser regulado por prescrições médicas. A passarela, ávida por novidades, ajoelhou-se diante da agulha. O corpo real voltou ao exílio. E é nesse cenário em que seringas conferem à magreza o título de progresso. Marina Kafer, aos 40 anos, aparece como uma cicatriz exposta — lembrança de que o corpo real continua interditado. Gaúcha, branca, de olhos claros, mas gorda — palavra que ela assume sem concessões, arrancando-a do insulto para transformá-la em signo de identidade. Cresceu entre cabides e araras, imersa no comércio da mãe, onde sua infância se confundia com o jogo de posar como vitrine viva. Mas aquilo que para a menina era brincadeira, para a sociedade já era sentença: não havia lugar para um corpo como o dela no território meticulosamente calculado das revistas. O recado, afixado na pele pelo silêncio coletivo, soava inequívoco: não existe espaço para você.

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Marina Kafer por @thaiscunhaff

 

Foi, portanto, relegada ao avesso do espetáculo. Marina aprendeu a operar na penumbra do sistema: vestir outras mulheres, organizar vitrines, compor figurinos, maquiar semblantes. Tornou-se arquiteta do brilho alheio enquanto o seu corpo era reiteradamente devolvido como excesso, como inadequação. Eis a engrenagem: transformar em operária invisível aquela que não se adequa ao molde, explorando sua criatividade enquanto interdita sua visibilidade.

Somente em 2020, no recolhimento imposto pela pandemia, uma fissura — breve e ambígua — pareceu abrir-se. Ao produzir conteúdo nas redes, Marina passou a receber comentários que a nomeavam como bela, legitimação que a indústria jamais lhe concedera. Foi chamada por uma agência, atravessando, enfim, a fronteira que separa bastidores e passarela. Mas a travessia revelou o quanto as estruturas permanecem intactas. Em um desfile, todas as modelos foram conduzidas ao camarim de maquiagem, menos ela. Sentada, confundida com cliente, aguardou em silêncio. A cena, aparentemente corriqueira, condensava décadas de exclusão: a recusa em reconhecê-la como profissional, a tentativa de reduzi-la novamente ao não lugar.

Para ela, a engrenagem não se oculta, tendo em vista que a moda incorporou corpos diversos apenas quando foi obrigada a sinalizar virtude, mas nunca os integrou como prática genuína. Agora, com a consagração das canetas emagrecedoras, o recado é ainda mais perverso. Se você não emagrece, é indolente; se emagreceu, é porque recorreu à farmacologia. A sentença é dupla: viver em seu corpo é sempre inadequado. A beleza, neste mercado, persiste como sinônimo de juventude magra — critério tão restritivo quanto inatingível, imposto como se fosse lei natural.

Houve, contudo, instantes de insubmissão. Um dos mais significativos foi a campanha internacional da Bepantol. Marina foi contratada não apesar de suas cicatrizes, mas precisamente por causa delas. Pela primeira vez, a pele marcada não precisou ser ocultada: as cicatrizes foram elevadas a protagonistas. Aquilo que durante anos tentaram apagar converteu-se em sinal de potência. Mas o episódio permaneceu como exceção. A regra é outra e opera de maneira diferente, roupas acima do manequim 46 continuam a ser mal cortadas, de modelagens amorfas, tecidos desleixados, vendidas a preços abusivos — como se vestir corpos gordos fosse concessão de segunda ordem, e não ato criativo à altura dos demais.

Marina não reivindica o estatuto de ícone nem deseja ser usada como bandeira decorativa. Reclama apenas o óbvio: que modelos gordas sejam reconhecidas como modelos, sem a necessidade de categorias especiais, sem o peso de justificativas, sem o peso permanente do rótulo. Mas a engrenagem prefere os extremos: ou erotiza o corpo gordo até a vulgaridade, ou o apaga sob os tecidos que o rejeitam. Entre a caricatura e a invisibilidade, quase nunca há espaço para o reconhecimento pleno.

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Marina Kafer em um ensaio fotográfico Foto: @thaiscunhaff

É nesse interstício que se revela o cinismo da indústria. As mesmas marcas que um dia mercantilizaram a diversidade em campanhas pontuais são as que hoje se prostram diante da agulha. A pluralidade, quando aparece, não passa de moeda de marketing. O corpo gordo, mesmo quando cruza a passarela, ainda precisa carregar a penitência de justificar sua própria presença. A moda, que tanto se vangloria de liberdade, permanece aprisionada à régua estreita que ela mesma fabricou.

Do mesmo modo, o tempo, ao se inscrever no rosto, foi reduzido a falha a ser corrigida. Rugas aparecem apenas quando rendem efeito, não quando pertencem à vida. Mulheres maduras atravessam campanhas e passarelas como se fossem acervo raro: um lampejo de reconhecimento seguido pelo retorno ao mesmo enquadramento estreito. Assim como a diversidade, o envelhecimento só encontra lugar sob o controle do espetáculo, jamais como presença habitual. Na engrenagem da moda, tanto a gordura quanto a velhice só podem existir se mascaradas de exceção glamourosa.

A belo-horizontina Kátia Gontijo, 62 anos, mãe de Mateus Gontijo, só depois dos sessenta encontrou uma fresta na passarela. Professora de ioga, habituada ao corpo em movimento, sempre recusou deixar que a condição do filho fosse obstáculo para a vida — e na sua própria história também não aceitou que a maturidade fosse barreira. Expõe, assim, a contradição de um setor que transforma a juventude em virtude e a velhice em erro. Em dezembro de 2024, abriu o desfile do estilista Luan Valloto; depois vieram convites de Adriana Meira, Camila Machado, Suntime Swim e No Waste. Sua presença, no entanto, não deveria ser lida como acontecimento extraordinário, mas como prova de um apagamento persistente: mulheres maduras quase nunca ocupam a cena, e quando aparecem, são tratadas como raridade, nunca como parte natural do espetáculo.

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Katia Gontijo na passarela da Suntime Swin. Foto: Divulgação

 

 

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Katia e Mateus Gontijo -  Campanha da Malwee de Dia das Mães, em 2024.

 

A moda não inventou a exclusão: apenas a repete, polida em suas vitrines. Fora dela, o mundo também insiste em olhar o envelhecer feminino como falha, como se a passagem do tempo fosse uma desobediência. O Brasil envelhece depressa, mas a velhice segue tratada como anomalia, não como parte do horizonte. Não se festeja a permanência — pune-se o excesso. Não por morrer cedo, mas por ousar durar. As rugas, a pele que cede, os fios que embranquecem — cicatrizes inevitáveis do tempo — são lidos como defeitos a eliminar. E a cada marca que se recusa a desaparecer, ergue-se um arsenal de seringas, lasers e máquinas que prometem apagar a vida em nome da juventude. Para a mulher, envelhecer tornou-se quase delito. O corpo que não se curva ao disfarce é empurrado para o canto escuro da invisibilidade.

Katia não aceita essa lógica. Assume suas marcas como testemunho de uma vida vivida, não como sinais de decadência. Recusa o pacto que transforma a maturidade em erro e a juventude em virtude absoluta. Chama-se velha sem hesitar, mas a violência está em apagar as mulheres que carregam no corpo a prova de que o tempo existe.

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Katia Gontijo pelas lentes de Carol Vianna

Se o corpo gordo é condenado como excesso e o corpo maduro lido como falha, o corpo atravessado por uma condição genética quase sempre se dissolve em silêncio. A moda, que veste o disfarce da invenção, revela sua velhice sempre que o tema é o capacitismo: ali, a exclusão não se esconde, ergue-se sem pudor. O ofício é negado, e o sujeito, esvaziado, vira metáfora. Transformam pessoas em símbolos edificantes, quando tudo o que pedem é o direito ao ordinário.

Na passarela, cada aparição é tomada não pela criação que propõe, mas pelo estigma que antecede o corpo. Em 2015, a australiana Madeline Stuart ousou atravessar o espelho dos desfiles internacionais. Não a receberam como modelo — exibiram-na como curiosidade, presença tolerada por um instante. No Brasil, o silêncio é mais espesso. Quando alguém se arrisca a romper a cena, não é acolhido no fluxo do espetáculo: é deixado à margem, costurado como exceção, lembrando que a regra, ainda hoje, atende pelo nome de exclusão.

Os corpos com síndrome de Down só há pouco começaram a cruzar passarelas, quase sempre em condição frágil, apresentados como raridade, como se viessem de um lugar alheio ao mundo. O capacitismo, paciente e invisível, ronda-os como sombra que não se dissipa. Não é apenas a recusa em lhes reconhecer o ofício; é o gesto mais cruel de reduzi-los a parábolas de superação, molduras edificantes destinadas a comover, mas nunca a incluir. O mercado lhes concede o instante, mas recusa a permanência — como se sua presença pudesse ser apenas parêntese, nunca texto.

E assim como o corpo gordo de Marina é empurrado ao ridículo — confundido com desleixo ou vulgaridade —, o corpo maduro de Kátia é silenciado por uma lógica que transforma a velhice em erro, enquanto o corpo atravessado pela deficiência é capturado entre dois cárceres: o da incapacidade presumida e o do heroísmo imposto. Nenhum desses destinos concede o que deveria ser natural: a graça de existir sem espetáculo.

É nesse ponto que entra em cena o paulistano Mateus Gontijo, 21 anos. Afirma o que deveria ser apenas ordinário. É jovem. Cozinha, dobra roupas, atravessa a cidade de ônibus, volta da escola sozinho, dança, pratica ioga, inventa personagens. E repete, sempre que pode, que é apenas um jovem comum. Não mascote da diversidade, não símbolo de superação. Ao mostrar sua rotina — do gesto banal de arrumar a casa às performances de Mateusina, o palhaço que criou, ou de MaDEUSALovE, a drag queen que encarna — devolve ao mundo uma lembrança incômoda: viver não é privilégio, é condição elementar.

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Mateus dando vida a Mateusina. Foto: @mateusnavida no Instagram

 

 

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Mateus na pele de MADEUSA LOVE, sua drag. Foto: @mateusnavida no Instagram

 

 

Foi em 2022 que Mateus, aos dezoito anos, atravessou a passarela da Casa de Criadores sob o convite de Rober Dognani. Cada gesto do percurso o atraía: a prova de roupas, em que o tecido se molda ao corpo como segunda pele; o ensaio, onde passos se repetem até que o erro se converta em precisão; a preparação de beleza, rito silencioso que antecede o clarão das luzes. Para ele, nada era detalhe. O caminhar diante do público não era fim, mas coroamento: ápice breve de um artesanato invisível, feito de costuras ocultas, todas dignas da mesma devoção.

 

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Mateus na sua estreia nas passarelas de Rober Dognani. Foto: @voguebrasil no Instagram

A partir dali, novas marcas o chamaram: Ellias Kaleb, The Paradise, Amapô Jeans. Em cada encontro, repetia a mesma condição — não favores, não paternalismo. Pedia apenas o essencial: roupas que lhe coubessem, respeito pelo ofício, reconhecimento pelo profissionalismo. Esse mínimo, tão elementar que deveria ser hábito, ainda ressoa como insubordinação em um setor acostumado a converter corpos diferentes em ornamentos transitórios, cintilações breves que não chegam a se tornar permanência.

Entre os trabalhos que acumulou, o editorial com João Pimenta permanece como marco. Todas as peças foram confeccionadas especialmente para ele. Pela primeira vez, não precisou adaptar-se ao que não lhe cabia: foi a criação que se ajustou ao seu corpo. E ali, em um gesto aparentemente simples, revelou-se a essência do que tanto se proclama mas pouco se pratica: inclusão verdadeira.

 

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Mateus Gontijo para o editorial de Joao Pimenta. Foto: Divulgação

Até uma entrevista para a revista Elle Men já concedeu. Detalhe que, em outras trajetórias, esse fato poderia ser apenas mais uma nota, mas que em sua vida adquire outra espessura: cada conquista é um contraponto à exclusão sistemática, cada reconhecimento, prova de que sua presença não depende de benevolência, mas de competência. No fim do dia, Mateus não disfarça quem é: modelo, artista — e tudo o que decidir ser, sem asteriscos.

Marina denuncia o corpo gordo: mercadoria disfarçada de inclusão, forma escondida sob tecidos que tentam apagá-la. O discurso que prometeu ruptura com o body positive dissolveu-se em marketing. Sua exigência é simples: roupas que vistam com dignidade, campanhas que não a releguem a rótulo. Diversidade não é ornamento, é urgência de corpos vivos mantidos à margem.

Mateus denuncia o corpo com deficiência: empurrado para a piedade ou para o heroísmo forçado, jamais reconhecido como profissional. Ele recusa os dois lugares e reivindica o direito elementar de trabalhar. Quer roupas que sirvam, reconhecimento pelo ofício, pagamento justo. Sua presença desmonta a farsa de uma indústria que proclama inclusão enquanto pratica exclusão.

Kátia denuncia o corpo maduro: condenado ao apagamento por uma engrenagem que insiste em tratar a velhice como falha. Ao se assumir velha, recusa a invisibilidade e enfrenta uma lógica que celebra raras exceções midiáticas enquanto descarta milhões de mulheres que seguem consumindo, desejando, vivendo.

Juntos, Marina, Mateus e Kátia enunciam o que deveria ser banal: existir não é concessão, é direito. Mas a moda insiste em administrar a diferença como ornamento passageiro, diversidade domesticada em cena controlada. O corpo gordo. O corpo com deficiência. O corpo maduro. Todos mantidos no limiar, como se pertencessem apenas ao avesso do palco. Enquanto a diferença for tratada como espetáculo efêmero, a inclusão não passará de máscara: a velha exclusão, agora bordada com o fio lustroso da novidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

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