Após três anos de pandemia, pobreza e fome crescem na periferia de São Paulo

Aumento dos índices de fome na capital paulista entre 2020 e 2023 resulta em crise humanitária
por
João Victor Tiusso e João Pedro Lindolfo
|
01/07/2023

A crise econômica gerada pela pandemia aumentou a pobreza na cidade de São Paulo, dificultando o acesso à alimentos em regiões da periferia. Bairros como Perus, Brasilândia e Sapopemba, alguns dos mais afetados pelo vírus, apresentaram piora significativa nos quadros de fcrescimento no número de famílias em situação de vulnerabilidade. 

Levantamento da Secretaria de Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, de julho do ano passado, apontam 684.295 famílias em pobreza extrema na capital. Um aumento de 44% em relação a janeiro de 2021. O estudo foi feito com base em dados do Cadastro Único da Prefeitura, utilizado nos programas de assistência social. 

A redução da renda da população periférica, reflexo do aumento do desemprego e da inflação, está impossibilitando as pessoas de adquirirem alimentos básicos do cotidiano. 

Dossiê Sobre Casos Extremos de Fome na Cidade de São Paulo, organizado pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), mostra que 25,3% das unidades de saúde que participaram do levantamento afirmaram possuir demanda de atendimento para indivíduos com sintomas decorrentes da fome entre 1 e 14 de dezembro de 2021. Casos assim só começaram a aparecer nas unidades a partir de setembro daquele ano, ainda no período de auge da pandemia. 

O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), realizado pela Rede PENSSAN, revelou que 2020 não havia domicílios com renda maior que um salário mínimo por pessoa em situação de fome, mas que em 2022 esse nível renda deixou de uma garantia contra a falta de alimentos. 

A pesquisa indica que 3% dos lares com essa renda tem seus moradores em situação de fome, 6% vivem com insegurança alimentar moderada e 24% não conseguem manter a qualidade adequada de sua alimentação.

"Hoje, um dos principais desafios do combate à fome é identificar as localidades mais vulneráveis. E a periferia é, com certeza, o lugar mais descoberto [pelas políticas públicas]”, afirmou Soninha Francine, Secretária Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. 

A secretária explica que a questão da insegurança alimentar em regiões mais pobres é negligenciada. Há pessoas que mesmo mantendo o emprego e tendo moradia fixa, não conseguem comprar comida por conta dos preços altos, porém isso não é tão debatido. Ela também faz uma comparação com a situação dos moradores de rua, que se tornou cada vez mais visível ao longo dos anos, resultando em um número maior de ações voluntárias de combate à fome. 

Juliana Andrade Favacho, coordenadora da Cozinha Solidária do MTST, comenta sobre o perfil das pessoas atendidas pelo projeto em zonas periféricas e centrais da cidade: “Nas periferias vemos muitas mães solteiras, negras e com mais de um filho, além de muitas pessoas desempregadas. No centro há mais pessoas em situação de rua e usuários de drogas, que não recebem atendimento por nenhum programa social.”  

Felippe Serigati, professor da Escola de Economia de São Paulo e ex-assessor da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, pontua: "Vimos o quadro de insegurança alimentar se deteriorando em todo o mundo. Isso se deu em intensidades diferentes em cada região, quanto mais pobre a localidade, pior os índices."

Regiões com maior insegurança alimentar

Vila Brasilândia, bairro da zona Norte da cidade, e Sapopemba, zona Leste, foram os distritos que registraram maior número de óbitos por Covid-19 em 2020 e 2021. Ambas estão entre as regiões mais pobres de São Paulo e mais dependentes das políticas de combate à fome promovidas pela prefeitura. 

Já o bairro da zona Norte, Perus, possui a 7ª pior remuneração média mensal e foi a segunda localidade com maior número de óbitos por covid de acordo com o Mapa da Desigualdade 2022, com 30,2% do número total de mortes sendo em decorrência da doença. 

Jardim Ângela, na zona Sul, iniciou 2022 com o maior número de casos de coronavírus na capital. Além de ser um bairro periférico, é o mais negro de São Paulo, com 60,1% de moradores negros na sua população, é o 12º com a remuneração média mensal e o 10º com o maior número de domicilios em favelas, mostrando que a questão racial que também circunda o problema da fome e de saúde pública na cidade. 

A periferia da zona Sul como um todo é uma área em estado crítico, abrigando 90% das famílias que passam fome. Os dados coletados pela prefeitura também mostram que 8% das famílias residem na zona oeste e 1% no centro se encontram na mesma situação. 

Grande parte dessas pessoas não conseguiram recuperar seus empregos ou se recuperar financeiramente após a pandemia, como afirma Vanessa Almeida, fundadora do projeto Periferia Sem Fome “Até hoje as pessoas não conseguiram se reestruturar, principalmente devido ao tempo em que ficaram sem emprego e ao aumento dos preços.”

"Eu ajudo pessoas que trabalham, que possuem uma residência. Mas com o valor dos alimentos hoje em dia, elas acabam tendo que escolher entre pagar o aluguel e comer”, disse Vanessa quando questionada a respeito do perfil das pessoas atendidas pelo projeto.

Inflação agrava ainda mais a situação 

A inflação de alimentos em todo o país é um dos grandes empecilhos à erradicação da fome. Segundo o IBGE, a inflação de alimentos e bebidas foi de 14%, 7,9% e 11% em 2020, 2021 e 2022, respectivamente. Além disso, no estado de São Paulo, o valor da cesta básica subiu de R$ 786,51 para R$ 1.014,63 no primeiro ano da pandemia. 

A alta do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo anulou parte do efeito das políticas de auxílio promovidas pelo governo. Iniciativas como o Auxílio Brasil, por exemplo, se demonstraram ineficazes. O retorno do Brasil ao mapa da fome no ano passado constata isso.

"Em 2020, a pandemia bate no mercado de alimentos de duas formas: do lado da oferta, porque há cadeias de distribuição congestionadas. E do lado da demanda, devido à incerteza inicial que levou muitos a estocar alimentos, aumentando os preços”, explica Felippe. 

O economista destaca que, além da pandemia, houve uma série de choques econômicos que contribuíram com a inflação. “No hemisfério sul, em 2021, tivemos problemas climáticos com uma onda de secas, fazendo com que os reservatórios operassem em um nível menor, geadas entre julho e agosto no Centro-sul, que prejudicaram a safra, e o início da Guerra da Ucrânia em 2022, que envolve grandes exportadores de grãos e fertilizantes.” 

O II Vigisan, revelou que 56% das pessoas vivem com algum grau de insegurança alimentar no estado de São Paulo. No Brasil, essa porcentagem é maior, com 58,7% da população brasileira convivendo com a insegurança alimentar e 33,1 milhões de pessoas não tendo o que comer.

Ações de combate a fome durante a pandemia 

A Rede Cozinha Cidadã foi uma das principais iniciativas da prefeitura para aliviar o problema de insegurança alimentar em São Paulo. Iniciado em abril de 2020, o projeto distribui por dia 10 mil marmitas em diversas localidades da cidade e 5 mil apenas no centro. O programa também arrecada cerca de 5 mil cestas básicas diariamente. 

Contudo, a política pública ainda enfrenta algumas limitações, como aponta Soninha Francine “Quando são distribuídas marmitas ao longo da cidade, por muitas vezes serem entregues a lugares distantes e o tempo necessário para a entrega ser alto, a qualidade da comida é comprometida e é isso que a secretaria de direitos humanos e cidadania está tentando mudar.”

Ela também chama atenção para o aspecto social e cultural de cada população: "Situações culturais também têm grande parte nesse projeto, como o respeito a culturas diferentes. É impossível separar algumas cestas para colocar ingredientes específicos para certos povos. Como, por exemplo, as tribos guarani que, por opção, não querem farinha de mandioca, mas não é possível tirar apenas para eles.”

A localização é outro problema, pois a maioria dos programas de auxílio encontram-se no centro da cidade, forçando as pessoas a atravessarem a cidade atrás de comida. Isso reflete muito na questão da fome para os moradores da periferia, que precisam pagar aluguel em vez de comprar produtos e muitas vezes chegam no centro em busca de alimento para uma família inteira.

Juliana Favacho aponta para essa questão: “Hoje, as políticas que existem são muito esparsas. Tem distribuição de cestas básicas, o Bom Prato, mas ainda é muito pouco para a cidade de São Paulo e muita coisa também fechou.”

Com essas limitações, uma solução definitiva para o problema da insegurança alimentar na cidade não é possível apenas através de políticas de redução de preços ou de distribuição de alimentos, como as que estão sendo implementadas desde o início da pandemia. 

Juliana acredita que seria necessário um programa que traga os alimentos produzidos por pequenos produtores próximos da cidade e sem intermediários: “Isso evitaria desperdício, melhora a qualidade do alimento e melhora o preço tanto para o produtor quanto para o consumidor.” 

Ela também defende a construção de hortas urbanas ligadas aos centros de distribuição, já que assim os alimentos poderiam ser adquiridos por valores mais baixos, melhorando os índices de alimentação.

"Há toda uma cadeia em que podemos pensar, espaços que já existem e incentivos que não exigem custos altos. Nas próprias ocupações do MTST nós produzimos alimentos para os moradores, por exemplo”, complementa a coordenadora. 

Para Serigati projetos de transferência de renda seriam mais eficientes. “As políticas de distribuição de alimentos são legais, mas, no caso do Brasil, precisamos de algo mais horizontal, programas de transferência de renda bem focalizados para os mais necessitados. Por mais desafiador que seja, o problema está aí e precisamos atacá-lo.” 

Nessa mesma linha, Júlia Schuback, coordenadora de projetos da Ação da Cidadania, ONG que atua em todo o Brasil, afirma: "Embora o Brasil  tenha programas de combate à fome, muitas vezes eles são insuficientes ou mal implementados, frente à dimensão do problema.”

Ela também aponta para os cortes e reduções orçamentárias significativas nas iniciativas de combate à fome e algumas foram até extintas, como foi o caso do CONSEA. “A atuação de projetos independentes que visam o combate à fome não substituem as políticas públicas e a responsabilidade do Estado de garantir o direito à alimentação adequada, uma vez que a insegurança alimentar é um problema estrutural e não momentâneo.”

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