10 anos | Comissão Nacional da Verdade fez o Brasil reviver o Estado Democrático de Direito

Partindo de um eixo central, a CNV auxiliou e teve o apoio de diversas Comissões espalhadas pelo Brasil, à exemplo da PUC-SP
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Danilo Zelic de Abreu Lima
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02/06/2022

Por Danilo Zelic

A ditadura civil-militar, regime político que durou 21 anos, de 1964 a 1985, foi marcado por diversas atrocidades humanitárias. Conhecido como um período de exceção, foi marcado, entre outros fatores, por: graves violações aos direitos humanos; numerosos Atos Institucionais; bipartidarismo; censura aos meios de comunicação; perseguição à oposição civil e política; prisões arbitrárias; um sistema judiciário favorável ao regime; e o aumento da desigualdade social no país.

Comparado com países da América Latina que passaram pelo mesmo tipo de regime autoritário e realizaram uma série de políticas públicas após a volta do estado democrático de direito, denominadas como Justiça de Transição – como a Argentina, Chile e Uruguai – a maneira como o Brasil executou essas medidas políticas e judiciais resulta do acerto entre os políticos e militares da época nos últimos anos do regime.

A iniciativa, tomada em grande medida da sociedade civil como instituições de direitos humanos, familiares de mortos e desaparecidos políticos, parcela de representantes da Igreja Católica e a vontade de políticos da oposição e partidos criados após o período de exceção, gerou uma série de ações foram formuladas para que o Estado brasileiro reconhecesse os crimes e violações aos direitos humanos durante a ditadura.

Desde então, ocorreram três ações promovidas pelo Estado direcionadas à Justiça de Transição: Comissão de Mortos e Desaparecidos (1995) e a Comissão da Anistia (2002), ambas no governo de Fernando Henrique Cardoso; e a Comissão Nacional da Verdade (2011), no governo de Dilma Rousseff. A última considerada como a que mais se aproxima de um projeto de Justiça de Transição.

Cartaz de desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia - Foto: Reprodução
Cartaz de desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia - Foto: Reprodução

Um elemento importante para compreender a implementação da CNV foi, sobretudo, a condenação que o País sofreu na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), no caso “Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil”.

Em 7 de agosto de 1995, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e a Human Rights Watch/Americas (HRW), em nome dos mortos e desaparecidos políticos no contexto da Guerrilha do Araguaia, entraram com uma ação contra o País para que houvesse um reconhecimento dos crimes cometidos pelo Estado durante a Guerrilha do Araguaia, entre os anos de 1972 e 1975, marcado por conflitos desproporcionais pelo Exército brasileiro contra militantes da resistência armada no norte do país.

No ano de 2009, a Corte aceitou a denúncia contra a Federação e o processo vigorou até 24 de novembro de 2010, dia da condenação do Brasil no caso Gomes Lund. De acordo com Paulo Cesar Gomes, historiador, escritor e coordenador e editor-chefe do projeto História da Ditadura, a política de Justiça de Transição adotada pelo Brasil tem as suas “especificidades” e é considerada pela maioria dos especialistas que “foi e vem sendo muito lenta”.

“No caso do Brasil, é meio que um consenso que foi e vem sendo muito lento, mas como também ele tem vários problemas no sentido de tornar a nossa transição incompleta, o que acaba dando essa característica da democracia brasileira hoje de muita fragilidade”, diz Gomes.

A LEI DA ANISTIA

A Lei nº 6.683, mais conhecida como Lei da Anistia, foi sancionada em 28 de agosto de 1979, durante o último governo do regime militar, João Batista Figueiredo, seguindo a lógica de seu antecessor, Ernesto Geisel, de uma abertura política “lenta, gradual e segura” em direção a um regime democrático.

Cartaz do III Encontro Nacional das Entidades da Anistia
Cartaz do III Encontro Nacional das Entidades da Anistia - Foto: Reprodução

Propunha anistiar todos aqueles que foram condenados judicialmente durante o período militar, incluindo políticos que tiveram seus mandados cassados, jornalistas, professores, universitários punidos pelos Atos Institucionais – decretos editados ao longo do regime que permitiam reprimir a conduta de pessoas da sociedade, usando o método da violência, forçando o exílio dos perseguidos, controlando a imprensa, entre outras situações.

Ao mesmo tempo, agentes do Estado responsáveis por crimes como torturas, desaparecimento forçado, repressão e perseguição violenta também foram anistiados, impossibilitando punições judiciais e criminais, a partir da implementação de uma ferramenta estatal para apurar tais violações, como foi a Comissão da Verdade.

No ano de 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) pautou a revisão da Lei de Anistia sob a relatoria do ex-ministro Eros Grau. Por sete votos a dois, a Corte manteve o entendimento da Lei adotada pelos militares, contrariando familiares de mortos e desaparecidos políticos, entidades de direitos humanos e partidos políticos favoráveis a revisão da lei. O entendimento se mantém até hoje, com ações movidas pela sociedade civil questionando a revisão da lei.

De acordo com Paulo Cesar Gomes, a produção de materiais durante a CNV, que serviriam de auxílio para a formulação de peças jurídicas direcionadas a população determinada a processar o Estado pelos crimes cometidos durante o período foi limitada pela Lei de Anistia. “Se sabia que era um órgão que tinha um papel de investigar, de aprofundar o conhecimento desse período, dar subsídios para que as pessoas buscassem seus direitos”, conta o historiador.

A COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

27 anos depois do fim da ditadura civil-militar no Brasil, o surgimento da Comissão Nacional da Verdade (CNV) – instituída pela lei 12.528 durante o então governo da Presidente Dilma Rousseff, em 18 de novembro de 2011 – foi um marco político institucional no que diz respeito ao reconhecimento de crimes e violações aos direitos humanos cometidos pelo próprio Estado. O trabalho realizado pela CNV durou cerca de três anos, iniciando no dia 16 de maio de 2012, até a data da entrega do Relatório Final, 12 de dezembro de 2014, determinado a sua elaboração a partir da lei. Esse ano, a CNV completou dez anos de sua instalação.

Partindo do princípio pela busca da memória e da verdade após o levantamento de graves violações aos direitos humanos entre os anos de 1946 e 1985, a Comissão CNV teve um papel semelhante ao Projeto: Brasil Nunca Mais, dos anos 80. Elaborado com 850 mil processos judiciais do Superior Tribunal Militar (STM), o projeto reuniu documentos do próprio Estado comprovando torturas e violações aos direitos humanos contra presos políticos.

Ex-presidentes e a presidente Dilma Rousseff, na posse dos membros da Comissão Nacional da Verdade - Foto: Jane De Araújo/Agência Senado
Ex-presidentes e a presidente Dilma Rousseff, na posse dos membros da Comissão Nacional da Verdade - Foto: Jane De Araújo/Agência Senado

Como lembra o historiador Paulo Cesar Gomes, a instalação da Comissão foi muito simbólica, desde o início dos trabalhos, passando pela realização de suas atividades até a entrega do Relatório Final.

“Esse simbolismo pode ser visto em imagens da época, não só vídeos, mas fotos também e reportagens, de como a instalação da Comissão ela foi muito midiatizada, midiatizada pela importância da iniciativa, pela centralidade que o Governo Dilma deu à Comissão. Também pela própria cerimônia de abertura que contou com a presença de todos os ex-presidentes brasileiros que estavam vivos naquele momento”, conta Gomes.

Nesses 2 anos e sete meses de trabalho, a CNV teve a participação de 200 pesquisadores e consultores; colheu 1121 depoimentos, 132 deles de agentes públicos; realizou 80 audiências e sessões públicas; e efetuou 11 inspeções de instalações públicas com o acompanhamento das vítimas de torturas que sofreram nos respectivos lugares. O historiador aponta que não foi somente a sua própria instalação que impactou o cenário político brasileiro, mas também a criação da Lei de Acesso à Informação (LAI) junto à Comissão.

Para ele, a LAI “fortalece o sentido de cidadania”. “Se a gente considera o acesso às informações públicas, pessoais que estão em Órgãos Públicos, como parte da garantia de direitos que não necessariamente tem a ver com reparação histórica”, relata. A Lei facilita, além de pesquisadores e historiadores, jornalistas que necessitam da busca por informações públicas.

No mesmo momento da criação da CNV, diversas Comissões da Verdade foram tomando conta de todo o território brasileiro, não só nas principais capitais do país, mas em regiões onde ocorreram diversas violações aos direitos humanos e tiveram pouca cobertura midiática, pelos principais meios de comunicação. As Comissões no âmbito estadual, municipal, sindical, legislativo, universitário e as chamadas comissões temáticas, tiveram papel importante para alimentar a Comissão Nacional com materiais e informações usadas para a elaboração do Relatório Final.

Entrega do Relatório Final
Entrega do Relatório Final - Foto: Fabrício Faria|CNV

O Relatório Final da Comissão é dividido em três volumes, respectivamente: as atividades da Comissão, as graves violações de direitos humanos, conclusões e recomendações; textos temáticos; e mostos e desaparecidos.

Dentre outras informações importantes, o Relatório totalizou 434 mortes e desaparecimentos político de vítimas do Estado brasileiros entre o recorte estudado no Órgão. Entres as 434 vítimas de violência da ditadura, 210 continuam desaparecidas. Reconheceu, também, o nome de 377 agentes da repressão responsáveis direta ou indiretamente por torturar e exercer atividade violenta contra pessoas detidas nas instalações do regime.

Ao final do Relatório, estão presentes 29 recomendações direcionadas às autoridades nacionais, com o objetivo de auxiliar na criação de políticas públicas contra violações aos direitos humanos, à punição de autores de crimes durante o regime e a eliminação de práticas e dispositivos que remetem à época.

A COMISSÃO DA VERDADE DA PUC-SP – NADIR GOUVEA KFOURI

A partir da criação de Comissões da Verdade por todo o País, a Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), que foi palco de duas situações violentas durante o regime militar, também realizou a sua, a Comissão da Verdade da PUC-SP – Reitora Nadir Gouvea Kfouri – CVPUC. Foi instalada no dia 10 de maio de 2013 e finalizou suas atividades no dia 18 de setembro de 2017, acontecendo o ato de encerramento no TUCARENA e o lançamento do Portal da CVPUC.

Assim como a Comissão Nacional da Verdade (CNV), produziu um Relatório Final, recomendações direcionadas ao direito à memória e os direitos humanos no País, a história da instituição durante o regime militar, e sobretudo, foi responsável por apurar o desaparecimento do estudante de Ciências Econômicas João Maria Ximenes, em 1974, a partir do contato de familiares com membros da Comissão.

Instalação da Comissão da Verdade da PUC-SP - Foto: Reprodução
Instalação da Comissão da Verdade da PUC-SP Foto: Reprodução

Segundo Leslie Denise Beloque, economista e professora da instituição e membro da Comissão da universidade, havia dois objetivos bem claros: registras a memória da universidade e uma ação pedagógica. “Tanto registrar, recolher uma série de eventos, de depoimentos para não deixar se perder essa memória, registrar essa memória, e dois fazer alguns atos, uma série de atividades que levasse para a comunidade o conhecimento dessa história”, conta a professora.

A economista ficou responsável pela pesquisa dos cinco estudantes da PUC que foram mortos pelo regime. Durante a pesquisa, as memórias do tempo que dividiu com eles estavam muito presentes. “Tinha dias que eu estava em casa escrevendo, trabalhando no computador, e eu tinha que me levantar e sair para andar. Porque palavras não são só palavras. Quando você começa a contar, escrever e pesquisar sobre essas coisas, todas as emoções, sofrimentos, alegrias e tristezas que você teve na época desses fatos, voltam como uma realidade assustadora”, diz Belloque.

Á frente da Arquidiocese de São Paulo, o Cardeal de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns teve papel fundamental na resistente ocorrida nas instalações da universidade. De acordo com Rosalina de Santa Cruz, assistente social e professora da universidade, episódios envolvendo o Cardeal também foram lembrados na Comissão.

“A história da PUC, não é centrada em seus presos, é centrada na resistência que foi a nossa universidade, e a resistência da PUC se dá pelo papel de Dom Paulo. Então não era só a gente ter uma reitora eleita, que Dom Paulo conseguiu naquele momento ter uma reitora de esquerda, uma professora [se refere a Nadir Gouvea Kfouri]. Mas também abrigamos a SBPC, a reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência”, lembra a professora.

A lembrança que Rosalina tem sobre a CVPUC passa pela carreira profissional e história pessoal. Lecionando na instituição desde os anos 80, “filha da puc” como ela mesmo diz, sentiu um certo alívio misturado de uma sensação de felicidade ao participar da Comissão. O ponta pé inicial da CVPUC, segundo Cruz, partiu da própria comunidade acadêmica com o apoio do Padre Rodolpho e não da Reitora, nomeada pela instituição e não escolhida a partir do voto. “É uma universidade que eu aprendi, que eu vivi a dar aula, até hoje dou e tenho um verdadeiro afeto e amor pela minha universidade que eu milito”, relata a professora.

Encerramento da atividades da CVPUC - Foto: Reprodução Facebook PUC - SP
Ato de encerramento das atividades da CVPUC - Foto: Reprodução Facebook PUC - SP

Tanto Belloque quanto Cruz avaliam que no momento da Comissão houve muito apoio e participação da comunidade puquiana. “A gente agitou bastante, todas as datas importantes da PUC a gente não deixava passar em branco, todos os acontecimentos, mesmo que for na sociedade, a gente fazia na prainha, a gente não deixava passar em branco nada dessas coisas”, lembra Belloque. A assistente social segue na mesma direção, porém com uma ressalva que considera importante, a continuidade da discussão trazida pela Comissão.

“Na Comissão não teve uma continuidade para nossos alunos, em conseguir que os alunos voltassem e reconstruir essa história que passou aqui na nossa rampa, no Pátio da Cruz, na nossa universidade”, ressalta Cruz.

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