Dia 57 de quarentena. O isolamento social começou mais cedo na minha vida. 5 de março, mais precisamente. Desde então, muita coisa mudou dentro de mim.
Eu que sempre tive uma vida agitada. Tudo o que estou vivenciando agora era inimaginável, uma paranoia ou enredo de ficção científica.
Quando criança, o único dia em casa era o domingo, mas não inteiro. As 18h, o compromisso de ir à igreja era sagrado. Nada podia interromper essa rotina. Escola, cursos, lições de casa, atividades na minha igreja. Essa era a minha vida. São quase três meses que não vivo mais. Há 57 dias, não saio de casa.
Hoje, acordei mais tarde que o usual. Abrir a janela foi a minha primeira ação. Ah, como o céu é lindo. Sempre admirei o céu, mas não tanto como agora.
Tomei meu café, comi um mamão. Essa quarentena me ensinou ser mais saudável, principalmente a fazer um desjejum quando acordo.
Antes, atrasada é o que sempre estava. Não acordava, pulava da cama. Vestia a primeira roupa que via. Escovava os dentes. Não podia esquecer do protetor solar. Pegava a mochila, já arrumada no dia anterior. Um livro, não podia esquecer. Chave, porta, elevador, rua, ônibus, faculdade. Agora, tudo é passado. Aprendi a valorizar o primeiro momento do dia. O levantar da cama nunca mais vai ser tão automático.
Olhei para tela do celular. Notei que em tempos comuns seria um dia de descanso. 1º de maio, o dia mais importante do ano para pensar sobre as atuais relações de trabalho. Com a pandemia, para muitos a data pode ter passado despercebida ou ser apenas um pensamento: “Ah, hoje era pra ser feriado”.
Era algo mais a se refletir. Um tempo como esse e tantas pessoas se arriscando em prol de outros, para alimentar um, entregar livros para outro. Entregar remédios ou apenas um milkshake. Sem falar daqueles que nem tiveram um tempo para pensar, com os afazeres do ofício da saúde, medicando um, atendendo outro, convivendo com a morte, dia-a-dia, ao vivo e em cores em uma escala muito maior do que a rotina médica lhe costumara.
Depois de muito tempo, entrei em um elevador. Decidi descer do 8° andar para aproveitar o condomínio. Não lembrava mais da sensação de ficar em um elevador apenas por poucos minutos. Antes me sentia presa, agora a liberdade estava próxima. Liberdade esta momentânea. Continuaria presa, mas o espaço ao ar livre alimenta minha ilusão.
Sentada no banco, contemplando o ar, percebi aves no céu – Foto: Liliane de Lima
Senti o vento bater no rosto. O canto dos passarinhos estava mais de próximo de meus ouvidos, sobrevoavam sobre a minha cabeça, e eu pude ouvir o barulho de suas asas rompendo o ar. Estes ruídos, por muitas vezes, foram imperceptíveis. Talvez, porque nos últimos dias, decidi ouvir o mundo sem fones de ouvidos.
O verde da grama, a poucos metros, também estava mais vívido aos meus olhos. Podia tocar as flores. Deslumbrar melhor o céu aberto.
Ouvi vozes de famílias em seus respectivos apartamentos. As varandas nunca haviam sido tão importantes. Gastei alguns minutos observando, sentada em um banco colorido em frente ao meu prédio. A uma distância considerada segura, havia um casal conversando, via chamada de vídeo, com uma amiga, aparentemente.
A máscara em seus rostos é um novo acessório obrigatório nas dependências do condomínio. Sorrisos não são mais vistos. A felicidade para ser percebida deve se transparecer no olhar. Talvez, se torne mais sincero do que apenas um sinal de empatia. Quem sabe?
No meu lado esquerdo, tem um campo. Ele era o principal espaço de convivência nas noites de quarta. Agora, permanece vazio. Todos os espaços comuns estão vazios.
De longe, avisto alguém me observando por uma janela, no condomínio vizinho. Aquilo me intriga um pouco. Não gosto de ser encarada à longa distância, porém posso ver sem uma janela.
Resolvi dar uma pausa para mim mesma. Afinal, é feriado. Deixei as pendências da faculdade para depois. Eu só quero respirar esse ar.
Ouvi de longe um choro de criança. Até o que me irritava, já não me estressa mais. Enfim, agora pego um livro de contos dos Irmãos Grimm, que sou fascinada, e o abro ao ar livre.
Dia 57 de quarentena. Nunca prestei tanta atenção nas mínimas coisas como agora.